Ana Barradas nas XV Jornadas Independentistas Galegas |
O coletivo Cem Flores recebeu a carta abaixo da comunista portuguesa Ana Barradas com "reflexões sobre o estado a que chegaram os comunistas e suas propostas de debate para poder superar essa situação".
Por considerarmos importante documento para o debate da necessária retomada do marxismo e reconstrução do Partido Comunista, reproduzimos abaixo.
Actual estrutura do capitalismo
A actual crise mundial do capitalismo tem gerado aumento do
desemprego, crescimento das desigualdades sociais, concentração da renda e
riqueza como nunca se viu antes, reforço das funções repressivas do Estado
e da guerra imperialista contra os povos, sempre que necessário, para preservar
o estado de coisas. O grande capital mostra-se incapaz de apontar saídas para
essa crise do capitalismo. Ela apresenta-se como uma crise profunda e
prolongada que exigirá reformas estruturais, com consequências sociais
imprevisíveis. À crise internacional do capitalismo soma-se o esgotamento do
modelo económico dos países mais frágeis, dependentes e
periféricos como Portugal.
As classes dominantes que gerem o contexto internacional dos
principais espaços imperialistas (EUA, Europa) demonstram não ter unidade em torno
de um projecto hegemónico. Uma parcela procura a retoma e o aprofundamento do
modelo neoliberal à custa de mais austeridade sobre os trabalhadores; outra
esforça-se por temperar os excessos que abalam a integração social, causando
insatisfação e rejeição social e fragilizando o apoio popular.
Tudo somado, os governos continuam a ceder ao grande capital,
esmagando os movimentos reivindicativos, retirando direitos sociais e laborais
e procurando dar continuidade a ajustamentos económicos que até agora se
revelaram inalcançáveis. Este modelo em vigor provoca a concentração de
rendimentos e da propriedade, aumenta a desigualdade social e de género,
promove a destruição ambiental e subordina toda a cadeia produtiva ao controle
e interesses das empresas transnacionais e do capital financeiro, espezinhando
os direitos humanos e fazendo perigar a própria sobrevivência do
planeta. A contínua acumulação de forças explosivas geradas pelo
capitalismo empurram a humanidade a caminho de tempestades destruidoras.
As reformas que penalizam os trabalhadores tendem naturalmente a
provocar lutas populares em todo o mundo. Contudo, estas são defensivas e não
passam a um plano superior de confronto continuado do trabalho contra o
capital. Reina o medo, o desânimo e a descrença na capacidade de mudança.
Cabe à classe operária e aos partidos que a servem enfrentarem o
desafio de impulsionar as lutas nas empresas e nas ruas, construir a unidade
anticapitalista da classe produtiva e alimentar as camadas populares com os
ideais de uma sociedade socialista avançada, socialmente justa. Urge construir
colectivamente, por todos os meios, sindicatos aguerridos, movimentos populares
e partidos políticos progressistas, novos projectos políticos em sintonia com o
nosso tempo, alicerçados na defesa e no aprofundamento da democracia popular,
na distribuição da riqueza e na soberania popular.
Há que promover a unidade da parcela mais avançada da classe
trabalhadora em torno de uma plataforma mínima, de um projecto político
internacional que promova a articulação das lutas no âmbito dos grandes espaços
imperialistas.
Se for dada continuidade, coerência e espírito combativo às lutas
populares, elas podem voltar às ruas contra as forças capitalistas e
imperialistas, o conservadorismo e o reformismo, o oligopólio dos média, a
direita e os sectores mais reaccionários, o racismo, a xenofobia e o sexismo.
Há que suster a erosão das conquistas democráticas já obtidas, dos
direitos laborais conquistados, lutar pela solidariedade com os povos em luta e
combater o avanço das políticas económicas que reduzem a igualdade social e
promovem a exclusão e a pobreza.
A esquerda acabou?
Com muitos dos partidos de esquerda empenhados em lutas entre
esquerda e direita em torno do parlamento, das eleições presidenciais, das
autarquias, do orçamento de Estado, das reformas neoliberais e da política da
UE e muito pouco voltados para a luta económica anticapitalista, a luta de
classes parece ter desaparecido. A política passou a ser institucional e a
girar em torno do binómio governo-oposição.
Esta é a abordagem “moderna” da política, ou seja, a política como a
luta dos cidadãos pelos seus direitos, pela liberdade, a dignidade, contra as
discriminações, etc. Nesta perspectiva “moderna” e “não doutrinária” há “lutas
anticapitalistas”, mas não classes inimigas; “alterglobalização”, mas não apoio
às guerras anti-imperialistas; “esquerdas”, “direitas” e “centros”, mas não a
avaliação dos interesses e forças de cada classe; “construção do campo
progressista”, mas não a construção da hegemonia do proletariado pela aliança
com as massas semiproletárias e pela sua demarcação crítica face à pequena
burguesia; “alianças frentistas” mas não a necessidade de um partido proletário
para a revolução; e, como meta, aspirações “populares” ao socialismo, mas não a
expropriação da burguesia através do estabelecimento da ditadura revolucionária
do proletariado.
Na lista da verborreia revolucionária não é esquecida a “alternativa
socialista”, o que poderá satisfazer militantes distraídos e fáceis de
contentar com meras comemorações de efemérides e evocações históricas. Mas o
objectivo socialista, sem uma indicação rigorosa de como será instaurado e por
quem, transforma-se numa quimera sobre a qual nada se diz.
Isto resulta de uma opção deliberada, como sabem os que têm
acompanhado o percurso da esquerda, em Portugal e na Europa. Os partidos de
esquerda abandonaram a postura de classe e o trabalho entre as massas
operárias, passaram a dar “menos peso ao propagandismo”, fizeram o corte entre
a teoria e as especulações marxistas, que trocaram pela política prática e
pragmática.
Qual o resultado? Os militantes libertaram-se do sinal de alarme que
mantinha desperta a vigilância da esquerda radical: trocarem os referenciais
de classe por noções democráticas gerais foi o primeiro passo para serem
levados docemente para o campo do inimigo.
Veja-se o que aconteceu aos Verdes europeus, aos partidos
comunistas “ortodoxos” na Europa, etc., e mais recentemente, os
efeitos práticos da “política real” posta em prática pela esquerda: a deriva
neoliberal do PT brasileiro, a contra-revolução na Venezuela, a derrota da
ETA, a rendição negociada das FARC sob a fórmula do processo de paz
colombiano, o ilusionismo da Syriza, a claudicação final de
Cuba, para não falar de lutas mais antigas esmagadas pelo sangue da repressão
genocidária (Tigres Tâmiles no Sri-Lanka), o abandono da guerrilha e a partilha
do poder com a burguesia (no Nepal), o refluxo do EZLN no México, e de
situações mais antigas como o fim do período revolucionário na Nicarágua, em El
Salvador, etc., e o colapso dos regimes revisionistas de Leste, todos eles
terminados com a mais vergonhosa rendição às forças da burguesia.
Desde a vitória da guerra do Vietname e das lutas de libertação
nacional das ex-colónias portuguesas, já lá vão mais de quarenta anos, são
demasiadas derrotas para quem quer entender as causas. Para lá do inegável
triunfo do neoliberalismo, invocado como “atenuante” para a inoperância das
lutas anticapitalistas, é imperioso encontrar os factores internos que, no
campo do comunismo dito revolucionário, têm entravado a capacidade de resposta
que pudesse levar o proletariado e o campo popular a um estado de resistência e
contra-ofensiva.
Apesar de tantos desastres, persiste a confiança em que o socialismo
se alcança pela conquista da maioria social através de uma modernização e
recomposição no campo popular da esquerda. Isto, numa fase de ofensiva imperialista,
significa na realidade todo um programa de colaboração de classes e de
cooptação pelo sistema. Quando o movimento de massas está subjugado e o poder
tem espaço de manobra, não pode existir alargamento das lutas a “todo o povo”.
A luta do proletariado português, mesmo no período de maior agitação
de há quarenta anos após o derrube do regime fascista, não foi além da luta
pela defesa das conquistas democráticas, não ascendeu ao nível de uma política
de classe. Os esboços que então surgiram de verdadeiro anticapitalismo foram
marginais, extremamente minoritários e rapidamente sufocados.
Por isso, a própria ideia de uma corrente comunista apostada na luta
para minar as bases do sistema parece exótica, se não nefasta, à generalidade
dos militantes. A noção de que “vamos avançando por pequenos passos” está tão
arreigada nas mentes que nem lhes passa pela cabeça que é esse o conteúdo do
reformismo.
“Lutar pela revolução, nas actuais condições, é pura loucura”, dirão
convictamente os militantes reformistas. Não lhes ocorre a ideia de que o
essencial não é saber se a revolução está mais próxima ou mais longínqua, mas
se a nossa acção prática diária actual, necessariamente limitada, está a
contribuir para a aproximar ou para a adiar. Generalizou-se na chamada esquerda
uma análise do “socialismo” que é uma concepção truncada e superficial do
marxismo que, embora com origem nas ideias de Marx, é um dos muitos
“contrabandos” importados da ideologia burguesa. A esquerda desistiu de ser
esquerda e dogmatizou deturpando: a antiga União Soviética teria sido
“socialista” ou “não-capitalista”, porque o Estado passou a ser o proprietário
dos meios de produção; o socialismo do século XXI não é o concebido por Marx e
Lenine, mas é o realisticamente possível; somos todos proletários, mesmo que
não sejamos produtores; todo o povo está interessado na revolução, incluindo
toda a pequena-burguesia.
O problema é que, na ausência de movimento revolucionário, mesmo as
metas limitadas do presente não são alcançadas. Esses que procuram um
socialismo “soft” sonham com uma revolução sem revolução. Não se pode ser mais
idealista. Já Lenine avisava: “As reformas são um subproduto da luta
revolucionária do proletariado. Lutando pelo máximo, conseguiremos, na pior das
hipóteses, o mínimo; mas lutando à partida pelo mínimo, não conseguiremos
nada”. A única luta que cabe ao proletariado travar só é válida se for
claramente apontada ao fim do sistema
Onde tudo começou
Com o 7º Congresso da Internacional Comunista e as teses nele
aprovadas, os partidos comunistas puseram o movimento internacional ao serviço
da democracia burguesa, sob a ilusão de que uma ampla política frentista
poderia trazer mais aliados para o campo do proletariado. Ora, este só
conquista terreno na medida em que demonstre a sua força e a da sua vanguarda,
o Partido Comunista. A pequena burguesia está habituada a respeitar a força.
O 7º congresso rejeitou a posição de que em todas as etapas da
revolução era necessário assestar o golpe principal nas forças políticas
intermédias. Ao reconhecer que “as forças e camadas intermédias podem
desempenhar um papel muito útil na luta contra o fascismo e pela democracia” –
evidência que não necessita de demonstração – o 7º congresso omitiu que a
utilização dessas forças como reservas do proletariado exigia a
paralisação da natural instabilidade dessas camadas. Ao desistir da crítica, da
demarcação, da luta pela hegemonia, para dar mostras de boa vontade unitária, o
proletariado passou automaticamente a reserva da burguesia. A escolha
para o proletariado não se punha pois, ao contrário do que disse Dimitrov,
entre democracia burguesa ou fascismo, mas entre luta revolucionária ou luta
reformista. Com a sua concepção de frente popular, Dimitrov não fez mais afinal
do que exprimir o sentimento profundo das massas pequeno- burguesas, acicatadas
e aterradas pelo fascismo, reivindicando com mais energia do que nos períodos
de «normalidade democrática» a subordinação política integral do
proletariado aos seus objectivos estreitos, impotentes, egoístas.
A capitulação face ao reformismo é a essência da política de frente
popular do 7.º congresso da Internacional, que promoveu afinal o
desaparecimento da classe operária para si. Esse abandono dos princípios
marxistas-leninistas persistiu ao longo das décadas e é o que hoje domina quase
todas as forças comunistas, sob diversas e variadas formas, umas mais
encapotadas que outras.
Como sair disto?
Essa é a pergunta que todos se fazem e não obteve ainda uma resposta
coerente e global. A pequena burguesia exerce uma hegemonia incontestada
nas “revoluções” em curso e que arrasta atrás de si, utilizando ao seu serviço
a classe operária. Há que reconhecer que as organizações comunistas têm de
encontrar em comum uma solução para a prolongada crise em que, por essa razão,
tem estagnado o movimento revolucionário.
Para insuflar o antigo vigor combativo à classe operária, esmagada e
invisibilizada pelo reformismo dos partidos ditos comunistas e pela hegemonia
pequeno-burguesa que estes promovem, é necessário separar águas, combater o
centrismo e o revisionismo, aclarar conceitos teóricos e repor o marxismo na
sua pureza, abastardada pelo 7º Congresso e tudo o que se seguiu.
O caminho é para a frente. Para o encontrar, os comunistas precisam
de reconhecer que:
1. O movimento de massas está privado por completo da intervenção de
qualquer vanguarda revolucionária.
2. Há que reatar a linha de continuidade com o bolchevismo aplicado
à nossa conjuntura histórica e rejeitarmos de vez uma série de adaptações
oportunistas do marxismo, desde o altermundismo, ao stalinismo, ao maoísmo e a
todas as outras correntes pequeno-burguesas pseudomarxistas que têm soterrado o
marxismo.
3. Há que reconhecer a necessidade de uma ofensiva socialista sob as
condições da nova actualidade histórica. A revolução proletária não nasce
espontaneamente, há que acumular forças para a preparar.
4. Dada a gravidade da crise mundial, a transição para o socialismo
deve ser encarada à escala global, tal como previsto por Marx. Há que
reformular a teoria da revolução proletária e do comunismo, para reagrupar uma
nova vanguarda comunista e levantar de novo a esperança na revolução
proletária.
5. Este esforço não pode fazer-se isoladamente. Tem de ter uma génese
internacionalista e deve começar por um debate ideológico em luta contra todos
os oportunismos, que assente as suas bases programáticas numa plataforma
revolucionária.
Ana Barradas, 2/6/2016
Concordo, Ana Barradas, mas não sei se estamos a falar da mesma coisa pois parece-me que o contexto geral da tua posição é ainda reformista (primeiros parágrafos e algumas partes dos seguintes)
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