segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

“Aurora, entretanto eu te diviso…”

A Noite Dissolve Os Homens
“A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas, nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos, a noite espalhou o medo e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda, sem esperança…
Os suspiros acusam a presença negra que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho na noite.
A noite é mortal, completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens, diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias, apagou os almirantes cintilantes!
nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo… O mundo não tem remédio…
Os suicidas tinham razão.
Aurora, entretanto eu te diviso,
ainda tímida, inexperiente das luzes que vais ascender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes,
vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram mas que avançam
na escuridão
como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes
se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez, uma inocência, um perdão
simples e macio…
Havemos de amanhecer.
O mundo se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.”
Carlos Drummond de Andrade [dedicado a Cândido Portinari], Sentimento do Mundo, 1940.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

De Hunan à Paris: relendo um clássico de Mao


É sabido que Paris, nas últimas semanas, tem vivido uma histórica onda de protestos e revoltas. O estopim foi o reajuste do imposto sobre combustíveis, que elevaram seus preços em todo a França. As convocações se iniciaram e têm se sustentado nas redes sociais, e não através das clássicas centrais sindicais e partidos reformistas franceses. E rapidamente as ruas deram lugar a diversas pautas, canalizando as vozes reprimidas das classes dominadas, em uma explosão de descontentamento que tem abalado o governo vigente.
No último sábado, mesmo após o recuo do governo de Macron em relação ao aumento, centenas de milhares de pessoas foram às ruas, em mais um dia de batalha campal contra as forças de repressão do Estado. 
A repressão estatal e os milhares de feridos e presos não têm conseguido arrefecer a onda, que já se encontra espalhada geográfica e socialmente. Outras cidades francesas e até da Bélgica e outros países europeus registraram manifestações dos "coletes amarelos" e seus aliados e apoiadores, como os estudantes de centenas de escolas.