As manifestações que sacudiram o país a partir de junho deste ano não
podem ser tratadas como fatos isolados, muito menos como ‘raios em dia de céu
azul’. Desde o agravamento da crise do imperialismo em meados de 2008,
manifestações semelhantes ocorreram em vários países, com características
similares de organização, contestação, formas de luta e reivindicações, que procuramos
listar ao longo deste texto e, principalmente, a imediata escalada da repressão
por parte do Estado e de seus aparelhos repressivos e ideológicos. As multidões
de desempregados, principalmente jovens, e trabalhadores precarizados que vão
às ruas do mundo todo resistir contra os efeitos da crise só recebem a violenta
repressão policial, enquanto os governos aprofundam as políticas de
“austeridade” buscando estimular a retomada do processo de acumulação de
capital, aprofundando a miséria e a exploração da classe operária e de quase
toda população. A crise do capitalismo fecha o círculo da repressão e do
controle militar sobre as perspectivas de luta popular de transformação social.
Na medida de suas especificidades, o Brasil enfrenta essa conjuntura a partir
de outro patamar histórico, ainda que por aqui o clima dos “megaeventos” (Copa
do Mundo em 2014 e Olimpíadas em 2016) sirva de pretexto adicional para o
fortalecimento de um estado policial que sempre foi bem conhecido do
proletariado e das camadas mais pauperizadas da população. A retomada de uma
perspectiva revolucionária da luta de classes, espaço ocupado aqui pela
hegemonia do petismo nas últimas décadas, é a tarefa principal dos comunistas
nesta conjuntura.
Advertência:
apenas um ponto de partida
Para compreender a reviravolta
política vivida no Brasil nos últimos meses, não podemos analisar a conjuntura de
forma superficial, através das noções da ideologia burguesa, como fazem quase
todos, incluídos os renomados ’especialistas’ de gabinete ou a soldo da ‘grande
mídia’, que não podem saber o que está acontecendo.
A quase generalizada falta de uma
análise mais profunda e embasada sobre os últimos acontecimentos no país,
tomando como ponto alto as manifestações de rua que se iniciaram em junho foi a
motivação para escrevermos estes apontamentos. O que entendemos como uma
análise mais profunda e embasada é a tentativa de uma análise de conjuntura à
luz da teoria da luta de classes, à luz do materialismo histórico, ou seja, da
posição proletária na luta de classes. Obviamente esta análise é apenas um
ponto de partida, a tentativa inicial de um aprofundamento teórico, que busque
iluminar esta conjuntura, identificando as diferentes posições em luta, o que se
justifica, uma vez que melhor poderemos atuar nesta situação concreta. Afinal, a
história nos mostra que “Sem teoria revolucionária, não há prática
revolucionária”.
Qual é a principal característica da conjuntura brasileira nessa momento, então? Ora, ainda que de modo inicial, gostaríamos de chamar atenção para o aspecto principal da contradição de nossa conjuntura: a crise do imperialismo, crise da nova divisão internacional do trabalho, impacta fortemente a economia brasileira na medida em que provoca rearranjos nessa divisão, resultando em baixo crescimento, menor lucratividade, e em pressões variadas para a redução dos custos de produção, principalmente os que afetam, direta e indiretamente, a reprodução da força de trabalho. Perante o crescimento da reação das classes dominadas, mobilizações de massas, dos protestos, greves e paralisações que emergem no cenário deste ano, os governos respondem e responderão com a intensificação da repressão policial.
A situação na qual o Brasil, país dominado, se encontra na atual crise do imperialismo não permite e nem permitirá qualquer tipo de "reorientação", "reforma" e etc. nas políticas e prioridades governamentais, que visem "atender" mesmo que de forma demagógica, às reivindicações das ruas. O governo manda e continuará mandando a polícia para cima dos manifestantes. E faz e continuará fazendo isso não por conta do caráter moral (ou da falta dele) desse ou daquele governante, mas porque não há brecha que as classes dominantes possam ceder para o avanço das demandas populares.
Isso posto, abre-se uma nova conjuntura política para a atuação revolucionária, pois a ficção que o PT montava para tocar as políticas das classes dominantes com uma cara "de esquerda" já caiu, e no entanto não há qualquer força política revolucionária, comunista, ou mesmo "de esquerda" que tenha conseguido crescer significativamente nesse contexto, dado que nossa "esquerda oficial" está impregnada na teoria e na prática com o reformismo burocrático e legalista, está afastada do povo, desenraizada, e continua e continuará trabalhando numa perspectiva estritamente eleitoral mesmo em um contexto como o atual. No entanto, as manifestações tendem a perdurar, o ciclo dos megaeventos e das reformas urbanas não deixarão de produzir conflitos e enfrentamentos, para os quais urge que a classe operária e o conjunto das classes dominadas tenha como ferramenta para se orientar na luta de classes a teoria revolucionária do proletariado, o marxismo-leninismo - que precisa recuperar sua capacidade de intervenção na conjuntura brasileira, tarefa que certamente não poderá cumprir sem transformar algo de suas formas históricas de organização e atuação política.
A crise é
a crise da nova divisão internacional do trabalho
Temos desenvolvido um conjunto de
análises desde os anos 2000 que aprofundam uma interpretação de que a atual
crise do capitalismo que vivenciamos (que tem como marco de seu agravamento a
quebra do Lehman Brothers, em setembro de 2008) na verdade é a expressão de uma
crise mais geral, uma crise da nova divisão internacional do trabalho.[i]
Esta nova divisão do trabalho vem sendo moldada/gerada desde a crise dos anos
1970, período no qual vários rounds
de crise/desenvolvimento foram experimentados (p. ex. o endividamento de países
principalmente na América Latina, o chamado neo-liberalismo, as inúmeras “bolhas”,
crises e “recuperações”), culminando, durante os anos 1980-1990, no que veio a
se sedimentar como expressão característica desta nova conjuntura: a “simbiose”
EUA/China e tudo que foi engendrado nesta nova divisão. Ou seja, o capital em
dificuldades de se reproduzir em escala ampliada à taxa de lucro cada vez
maior, entra em crise, e ao entrar em crise experimenta diferentes formas de buscar
contrarrestar esta crise, encontrando nos anos 80-90, no grande manancial de
mão-de-obra barata chinesa (principalmente chinesa, mas poderíamos falar
asiática) a sua “saída”.
Saída que se caracteriza “na
tendência crescente de transferência da indústria dos países dominantes,
principalmente dos Estados Unidos e mesmo de países dominados que haviam
atingido um determinado nível de industrialização, para a Ásia, principalmente
para a China a busca de contrarrestar a queda da taxa de lucro”; “na
constituição de um mercado consumidor (...) compreendido pela construção de um
novo setor industrial na Ásia, particularmente na China, e de um novo mercado
mundial - exatamente nos países dominantes, principalmente os EUA, assim como
países dominados capazes de realizar bens de consumo de média e alta
tecnologia, que estavam transferindo sua indústria, se ‘desindustrializando’ no
processo, o que quer dizer, aumentando o desemprego e reduzindo a base de
consumo - para os bens de consumo produzidos crescentemente na Ásia”; “na
constituição de uma ‘esfera’ financeira capaz de absorver e aplicar a crescente
massa de capitais gerados pela industrialização crescente da Ásia, e
principalmente da China, em cima de uma taxa de lucro extremamente elevada nas
novas condições de produção. Tanto capaz de financiar (criar crédito) não só o
processo de transferência da indústria para a Ásia, como de criar crédito para
garantir a realização desta produção, o consumo crescente de uma produção
crescente. Essa mesma esfera financeira também permite, no mesmo processo, a
valorização fictícia de capitais.”[ii]
Toda esta nova divisão do
trabalho, toda esta nova forma de reprodução do capital em nível mundial
“encontrou o seu limite, o seu obstáculo. A crise é a impossibilidade de
continuar valorizando o capital à mesma taxa de lucro (...)”.[iii]
Da mesma forma que a crise dos anos 70 acabou forjando uma nova divisão
internacional do trabalho, como forma de resolver, ao menos momentaneamente, as
suas principais contradições, esta nova divisão internacional do trabalho
experimentando sua saturação, expressa pela dificuldade de reproduzir tamanho
volume de capital à mesma taxa de lucro, tende a sair da crise somente mediante
uma nova reorganização mundial da produção. Ou seja, a nova divisão já não é
mais “nova”, não consegue movimentar o capital no ritmo que o mesmo necessita.
“Portanto, a tendência é a de que, diante da reação mais ou menos coordenada
dos Estados capitalistas a serviço do capital, tentando frear a crise, que esta
vá se aprofundando gradualmente e perdure por um largo período de tempo e de
que o capital sob o aguilhão da taxa de lucro lute por buscar melhores
condições de produção por todo o mundo, e em especial, a baixar o valor da
força de trabalho para manter a taxa de lucro.”[iv]
Em junho de 2009 quando
publicamos esse texto, apontamos ainda para as principais consequências deste
período em que o capital busca avidamente por uma saída para a sua crise,
dizendo que a conjuntura na qual a crise vem se desenvolvendo tende a:
“agravar a luta de classes na
maioria das formações econômico-sociais que compõem o sistema imperialista,
agravando a contradição antagônica fundamental do capitalismo – a contradição
burguesia/proletariado – porque força o agravamento da luta da classe dominante
para rebaixar o preço da força de trabalho, tanto nos países imperialistas
quanto nos países dominados, para permitir, primeiro, as condições de
valorização do capital em todo o mundo; segundo, condições ao capital (a
produção), nesses países, de concorrer com o capital que se deslocou (a
produção) para a Ásia ou Europa Oriental – neste último caso, principalmente os
países imperialistas da Europa, etc. - e porque força o agravamento da luta da
classe dominada para resistir a este rebaixamento do valor da força de
trabalho; (...).”[v]
A título de exemplo deste
movimento das classes dominantes no sentido do rebaixamento do valor da força
de trabalho em seus respectivos países após 2008, o gráfico abaixo é bastante
representativo, e fornece elementos para compreender porque determinados países
tem se “saído melhor” do que outros em meio à crise, em particular a Alemanha:
O gráfico mostra que, pelo menos
desde o final dos anos 1990 (na verdade desde a reunificação alemã), o custo
unitário do trabalho se manteve em tendência de queda na Alemanha (e
aproximadamente constante na França), ao passo que em outros países como
Grécia, Portugal e Espanha, o custo unitário do trabalho aumentou. Em outras
palavras, a “competitividade” destes países diminuiu frente à Alemanha. Daí os
diferentes impactos que a crise que eclodiu em 2008 teve sobre os diferentes
países, o que tem feito acirrar a luta das classes dominantes no sentido de
rebaixar o valor da força de trabalho, como mostram os sucessivos cortes,
primeiro de “direitos” (férias remuneradas, aposentadorias, auxílios, etc.),
depois dos próprios salários nominais nos países nos quais as classes
dominantes tentam desesperadamente implantar sucessivos pacotes de
“austeridade”.[vi]
No texto de 2009 escrevemos
também que a conjuntura na qual a crise vem se desenvolvendo tende a:
“gerar o agravamento das
contradições interimperialistas tendo em vista que países, ou trustes e
cartéis, que conseguiram se adiantar à tendência e passaram a produzir em novas
condições aumentam suas vantagens sobre outros países ou empresas. O fato de
que países ou cartéis e trustes estão produzindo com maior taxa de lucro tende
a acirrar a concorrência, a disputa por mercados e fontes de matérias-primas.”[vii]
Basta um pequeno levantamento dos
conflitos e agressões imperialistas mais recentes – Afeganistão, Iraque, Líbia,
Egito e demais países africanos que compõem a chamada “primavera Árabe”, para
verificar a justeza dessa afirmação, cada conflito, invasão, ocupação, golpe de
Estado representando a luta dos diferentes capitais dos países imperialistas, e
seus aliados nas classes dominantes de cada país, pela própria manutenção ou pelo
deslocamento de concorrentes nas zonas de influência.
Brasil
Todo este processo de
reconfiguração da economia mundial que se inaugura após a crise dos anos 70, é
um processo que provoca modificações tanto em nível global, nas relações entre
os diferentes países (dominantes e dominados), como em nível local, nas
formações econômico-sociais destes países, na sua forma de reprodução interna
do capital. Uma modificação conformando a outra, uma ocorrendo nos limites da
outra, numa relação dialética.
Com relação a isto e
especificamente com relação à formação econômico-social brasileira, afirmamos,
em fevereiro de 2006, que “O rearranjo em curso na economia mundial
sobredetermina o rearranjo da formação econômico-social brasileira que se faz
em razão, em conformidade e a serviço do processo em curso para contrarrestar a
tendência de queda da taxa de lucro, do processo de reprodução do capital na
economia mundial.
(...)
Nesse processo a indústria, ou
mais precisamente, o setor da indústria de capital estatal, privado, nacional e
externo que respondeu, historicamente, pelo dinamismo econômico a partir do
começo do século XX com a industrialização vem perdendo a condição de setor
dinâmico na economia. Setor esse que se compunha, basicamente, pela indústria
de bens de consumo duráveis – e os setores que a ela se encadeavam – e de bens
de capital e infraestrutura. Em seu lugar, crescentemente, vêm aparecendo
setores como a agroindústria, o setor de mineração para exportação, e as
plataformas de fabricação e montagem para exportação formadas por empresas
estrangeiras ou de capital nacional a elas associadas, etc.
(...)
A estagnação da economia
brasileira e da América Latina na década de 1980, em função da crise do
imperialismo e de suas graves repercussões nos países dominados do continente,
atingiu severamente esses setores da burguesia. A estratégia de rearranjo,
reorganização, para contrarrestar a crise, via abertura da economia brasileira,
privatizações, liberalização dos fluxos de capitais, estímulo, permissão ao ingresso
de capitais estrangeiros diretos, provocou por um lado, a eliminação de setores
da burguesia interna, cadeias industriais que foram as primeiras a serem
desnacionalizadas (como a de autopeças, por exemplo) e também substituídas por
produtos importados – em uma cruel revanche da história, realizando uma
substituição de importações às avessas. Por outro, uma reorganização da
produção que anteriormente visava o mercado doméstico (talvez o melhor exemplo
seja a atuação das empresas antes estatais e agora privadas, como a Vale do Rio
Doce e a Companhia Siderúrgica Nacional) e que passou a se voltar para o
mercado externo em função de atender aos interesses da reconfiguração da
economia mundial (minérios para a China, por exemplo). Reorganização para o mercado
externo em função de sua maior dimensão e vantagens, inclusive a provocada pela
abertura dos mercados (que tornou viáveis exportações para mercados que antes
tinham tarifas e/ou barreiras muito altas ou proibição de importações pura e
simples), da competitividade das commodities brasileiras, da necessidade da
busca de receitas em dólares para remunerar o capital financeiro, e da nova
configuração das atividades das empresas transnacionais repartindo o mundo
entre suas filiais.
(...)
E, diferentemente do processo de
industrialização que vinha ocorrendo até meados da década de 80, os novos
setores dinâmicos da economia completam seu ciclo produtivo realizando no
exterior, ou seja, com a venda dos produtos no exterior. Não apenas isso, como
também, dadas a crescente participação do capital monopolista externo e a
liberalização cambial e financeira, acumula-se no exterior os lucros obtidos.
(...)
As mudanças na estrutura
econômica se expressam em transformações que visam atender as necessidades da
nova configuração da divisão internacional do trabalho que vai tomando a
economia mundial: 1 – fornecimento de commodities; matérias-primas (petróleo,
ferro, aço, alumínio, cobre, etc. madeira, couro, etc.) e alimentos (grãos,
carne bovina, frango, sucos, açúcar etc.) para o novo polo industrial asiático;
2 – ocupação do mercado interno por bens de consumo superproduzidos no mercado
mundial; 3 – obtenção de ganhos de escala para o setor industrial nas mãos do
capital externo, oferecendo infraestrutura e força de trabalho barata; 4 –
constituição de um mercado financeiro capaz de valorizar o capital
sobreproduzido na economia mundial.”[viii]
Trocando em miúdos, podemos
afirmar que há cerca de 40 anos, a formação econômico-social brasileira iniciou
um processo de profundas alterações em sua estrutura produtiva, passando a ser
hegemonicamente produtora de commodities para exportação e importadora de
produtos industrializados. Um dos “sintomas” dessas alterações é a queda da
participação da indústria de transformação (exclui extração mineral e primária)
no PIB, como mostra o gráfico abaixo[ix].
Qual a
relação desta análise com as manifestações de junho?
1. Uma
decorrência desta análise de 2006, que de certa forma já foi confirmada através
dos dados da economia brasileira deste período, é que o país se tornou mais
dependente do mercado externo, tanto para a realização (via exportação) das
mercadorias (commodities) aqui produzidas, como pela importação de mercadorias,
insumos dos mais diversos que já não mais são produzidos aqui devido à quebra
de elos da indústria. Desta forma, colocaremos algumas questões no sentido de
serem confrontadas com a realidade e verificarmos a sua adequação para a
análise da situação concreta da luta de classes e seu aprofundamento que
culmina com as manifestações. O crescimento da economia chinesa já não é mais o
mesmo. As décadas de reformas capitalistas na China causaram o agravamento das
contradições inerentes ao capitalismo, como a luta de classes entre burguesia e
proletariado (o que nas condições concretas atuais chinesas implica o aumento
das greves, paralizações e ocupações de fábricas e o aumento dos salários) e a
tendência ao sobreinvestimento e à superacumulação de capitais (expresso e
reforçado nos sucessivos pacotes governamentais anticrise), deixando para trás
o período de taxas de crescimento de dois dígitos. Em 2012, a China registrou
crescimento de 7,8%, o menor em 13 anos. Esta desaceleração da economia chinesa
também resulta, além dos fatores internos, dos impactos da crise do imperialismo,
reduzindo a demanda mundial por exportações;
2. Sendo
a China o principal país comprador das commodities brasileiras, isto teve um
reflexo direto na atividade exportadora brasileira, reduzindo os preços
internacionais dos produtos exportados pelo país, como mostra o gráfico abaixo[x].
Em dezembro de 2002, os termos de troca (normalizados para índice 100 naquele
mês) atingiram menor nível desde julho de 1994. A expansão dos preços das
commodities (“efeito-China”) levaria a um ganho de quase 50% no indicador até
setembro de 2011. Depois disso, a queda acumulada já chega a quase 10%, sem
perspectiva de recuperação sustentada.
3. A
reconfiguração da economia brasileira, reforçando seu papel de produtora de
commodities para exportação e ao mesmo tempo inundando o mercado interno de
produtos industrializados importados, barateou o valor da força de trabalho, o
que levou a uma situação na qual a geração de novos postos de trabalho com
remuneração até 1,5 a 2 salários mínimos tornou-se regra. Se desde o final do
governo de FHC e na maior parte dos 10 anos de governo petista houve aumento
real do salário mínimo, ao mesmo tempo a grande massa de trabalhadores que
recebiam salários acima do mínimo viu seus rendimentos diminuir, de forma
inversamente proporcional à escolaridade, inclusive (veja anexo).
4. As
mais elevadas taxas básicas de juros do planeta, praticadas durante os governos
FHC e Lula, como uma forma de atrair capitais para financiar a reconfiguração
da economia brasileira, atuaram como um fermento ao crescimento dos bancos, que
“nunca antes na história deste país” haviam experimentado tamanho crescimento.
Além disso, já se reverteu a tendência de diminuição da taxa básica de juros,
experimentada no final do governo Lula e durante os dois primeiros anos do
governo Dilma.
5. A
inflação alta que corrói a capacidade de compra dos salários, que se encontram
cada vez mais comprometidos com pagamentos de carnês, créditos consignados,
créditos de toda espécie, diga-se de passagem, com juros extremamente elevados
– e com tendência a aumentar ainda mais. Ou seja, o mesmo mecanismo que
alavancou a demanda agora a deprime[xi].
6. A
estrutura estatal montada de repasse direto de capital aos mais diversos ramos
das classes dominantes e a “sangria dos cofres públicos"[xii]
através de repasses, subsídios, etc.[xiii]
A falácia da “nova classe média” é apenas um aspecto do arremedo
“desenvolvimentista” montado para buscar um aumento do consumo interno,
expressão da luta entre diferentes frações da burguesia, aquelas voltadas para
o mercado interno, aquelas especializadas em exportação, assim como o setor
financeiro. Os sucessivos programas de desoneração fiscal, uma verdadeira
‘bolsa-capital’, já somam mais de 250 bilhões de reais, segundo dados da
Receita Federal (http://www.receita.fazenda.gov.br/Arrecadacao/RenunciaFiscal/default.htm).
7. Toda
a estrutura sindical e partidária de ideologia petista (fundamentalmente),
montada desde os anos 80, que de certa forma surge no espaço deixado pelas
organizações comunistas (tomadas desde há muito pela incompreensão do marxismo,
pelo reformismo/revisionismo) entra em falência. Com a ascensão do PT e
quejandos ao poder federal, esta estrutura se afasta das justas demandas dos
trabalhadores e cada vez mais vai assumindo verdadeira e claramente a sua
posição de classe, de defesa das classes dominantes, aprofundando a exploração
sobre a classe trabalhadora. Se por um lado a subida ao poder desta estrutura
facilitou (facilita) a implementação de toda esta política, a sua falência tira
um obstáculo do caminho da resistência dos trabalhadores, caem as amarras que
imobilizavam as massas, livres das expectativas que o PT, Lula e Dilma poderiam
proporcionar, e a classe operária vai ganhando protagonismo na luta de
classes.
Todas estas, a nosso ver, são as
causas de um conjunto de atos contestatórios e greves, praticados pela classe operária
desde 2011 para cá, a saber: Jirau, Santo Antônio, Greve dos Trabalhadores da
Volks no Paraná, Greve na GM de São José dos Campos, Greve dos Professores na
Bahia e em Minas Gerais, Greve do Funcionalismo Público Federal, etc., e
finalmente as manifestações que têm ocorrido desde junho, exigindo melhores
condições de transporte, saúde, educação e demais serviços públicos. Todas elas
podem ser caracterizadas de uma forma geral: pela truculência com que os
diferentes aparelhos de Estado (repressor e ideológico) as trataram; pela forma
relativamente “autônoma” (por fora dos sindicatos) que se deram; e pela
relativa não conquista das pautas de reivindicações. Estes três aspectos,
quando analisados em conjunto mostram, por um lado, as dificuldades que o
proletariado e as classes dominadas terão de superar na retomada da ofensiva na
luta de classes para arrancar à burguesia quaisquer ‘concessões’ e, por outro
lado, são o sintoma incontestável desta retomada, da imensa capacidade de luta
e da criatividade das massas exploradas.
A
falência das organizações dos trabalhadores dominadas pelo reformismo e o
caráter das manifestações
A nosso ver, as considerações
expostas acima sobre a crise do imperialismo e da nova divisão internacional do
trabalho, somadas à falência de todos os partidos ditos de “esquerda”, que
estiveram à frente desta política de readequação da posição brasileira na
economia mundial (PT, PC do B, PSB, PDT, etc.) – falência que é um reflexo da
crise mais geral do capitalismo e não de uma inabilidade qualquer de gerir o
capital, pelo contrário, estes grupos ainda são os melhores na condução destas
políticas – são o que poderíamos chamar dos fundamentos, das causas principais
das manifestações que se iniciam em junho. Da mesma forma que a real posição de
classe destes partidos é clareada pelas condições criadas pela crise do
imperialismo e seus reflexos no país, por outro, as organizações ditas de
defesa dos trabalhadores (CUT e demais centrais sindicais, UNE, UBES, MST, etc.)
também se demonstraram totalmente corroídas pelo reformismo e cooptadas pelo
governo.
Sejamos diretos: se até anteontem
parecia a certos setores que era preciso ‘pedir licença’ para criticar os
governos do PT, agora podemos afirmar abertamente que desabou o mito do
“lulismo”. Ou seja, perdeu o chão aquela impressão generalizada – que comandava
a leitura da realidade da grande mídia, de propagandas governamentais e de
intelectuais de “esquerda” – de que, afinal de contas, o país está melhorando,
crescendo e distribuindo renda, cuidando dos pobres, “erradicando a miséria”
(este sim, o mais genuíno produto do capitalismo) e etc. O velho mito da
conciliação de classes, que parecia enfim realizado no “milagre” do lulismo,
tendo imobilizado boa parte das forças sociais e da “inteligentsia” do país,
fascinadas com essa alucinação em que saíam felizes tanto o capital financeiro
e o agronegócio quanto os “pobres” e a “nova classe média”, desabou. A ideia de
que o “progresso” do nosso crescimento econômico iria beneficiar todas as
classes expôs agora o seu fundamento real: no capitalismo não pode haver
crescimento econômico sem aumento da exploração dos trabalhadores.
Pois bem, essas contradições, que
não tinham por onde encontrar uma válvula de escape que articulasse a
insatisfação generalizada dos trabalhadores – dado, por um lado, que boa parte
das nossas organizações de “esquerda” se empenharam zelosamente em desarticular
e impedir que as lutas sociais desabrochassem ou pelo menos que ganhassem
alguma voz em meio à anestesia do entusiasmo lulista e, por outro lado, dado
que a maior parte dos trabalhadores não está organizada politicamente –
explodiram com a escalada das manifestações contra o aumento das passagens.
A falência do petismo escancarou
também a falta de capacidade das organizações autoproclamadas de “esquerda”
(PSTU, PSOL, PCB, etc.) para entender a conjuntura atual. Foi no mínimo bizarro
ver, em meio aos grandes protestos, lideranças de conhecidas agremiações “de
esquerda” afirmarem que “estamos vendo a direita em ação”, ou então tentarem
dirigir as manifestações – ao seu modo, claro, chamando para as tradicionais e
desgastadas “frentes de esquerda”.
Mais do que isso, as
manifestações demonstraram o abismo que separa as necessidades dos
trabalhadores e do povo daquilo que as autoproclamadas organizações de esquerda
têm a oferecer: de fato, fora o palavrório oco, essas organizações não propõem
nenhuma tática consequente de luta contra a repressão do estado representante
dos capitalistas, nem tampouco uma alternativa real de organização e luta, de construção
do socialismo. Afinal, a autodenominada “esquerda” tem algo mais importante com
que se preocupar: as próximas eleições...
Depois de mais de três décadas de
petismo – que surgiu e cresceu no vazio deixado pelas organizações de
inspiração marxista e nos erros dos comunistas, que resultaram no abandono dos
trabalhadores e do povo à própria sorte – resta apenas uma vaga lembrança da posição
proletária na luta de classes, isto é, das experiências de organização e luta
dos trabalhadores, calcadas na denúncia da exploração capitalista da
mais-valia, e na consequente necessidade da organização da classe operária e do
povo para a tomada revolucionária do poder para a construção do socialismo,
através da ditadura do proletariado.
O “esquecimento” dessas
experiências e desta posição proletária, inclusive por organizações que se reivindicam
marxistas, revolucionárias, comunistas, etc., ao atuar como um obstáculo ao
avanço da luta dos trabalhadores – seduzidos pelo canto de sereia do petismo e
do lulismo – criou (cria) condições para o surgimento de novas/velhas formas de
luta “anticapitalista”, das quais a tática Black Bloc é o exemplo mais atual e
marcante[xiv].
Na atual conjuntura, a necessária resistência à
crescente e brutal violência policial nas manifestações, somada à ausência de
uma organização política que aponte para a alternativa da tomada revolucionária
do poder, enraizada na classe operária e no povo, fez com que a “questão” dos
Black Bloc's fosse colocada no centro dos holofotes. Não se trata nem de
concordar tanto com a ladainha da esquerda reformista que prega meios pacíficos
e ordeiros de manifestação, quanto com a ladainha de anarquistas ou de qualquer
outra posição voluntarista que coloque o enfrentamento com a polícia como
medida de consciência revolucionária.
O aspecto central, como já assinalamos, é que atualmente
qualquer manifestação política, “pacífica” ou violenta, só encontrará o
cinismo dos governantes e a repressão dos aparelhos do Estado[xv].
A tática dos Black Bloc's acabou se tornando um fim em si mesma e não se propõe
a enfrentar o principal desafio colocado para a organização das lutas populares
no Brasil, que é a reconstrução de um movimento de massas orientado pela
posição proletária na luta de classes que sustente uma ofensiva das classes exploradas
brasileiras. Ainda nesse contexto, é evidente a insuficiência de posições que
se limitam em “propagandear a revolução”, como se o abismo que separa a maior
parte dos trabalhadores brasileiros de uma perspectiva de emancipação pudesse
ser superada da noite para o dia.[xvi]
Não queremos de forma alguma desmerecer a juventude
que adere à tática Black Bloc na resistência à repressão do Estado, mas não
podemos deixar de comparar a destruição dos “símbolos do capitalismo” eleitos
por esses manifestantes com a destruição das máquinas pelos operários nos
primórdios do capitalismo, o chamado ludismo. Deste ponto de vista, a
violência em manifestações não deixa de extravasar os anos de
exploração, esmagamento, e de violência estatal cotidiana contra os
trabalhadores. Mas, o que estamos querendo dizer é que a prática de uma tática
descolada de uma percepção estratégica na luta de classes é cair no
voluntarismo, ou seja, a ausência de uma perspectiva que preconize a
necessidade da organização da classe operária e do povo para a tomada
revolucionária do poder, para a construção do socialismo através da ditadura do
proletariado, faz da tática Black Bloc uma forma de ação limitada, e que
pode até ter efeitos contrários ao objetivo de avançar na organização dos
trabalhadores.
É hora, portanto, de aproveitar todo o
descontentamento, indignação e revolta popular para recolocar em campo a
perspectiva da luta de classes, a perspectiva da organização das lutas
populares no sentido da construção da revolução e do socialismo. Afinal, o
petismo ainda deixa suas marcas no senso-comum (difícil distinguir os dois...)
quando a ideologia que orienta os protestos coloca na “vontade política” ou no
“caráter” pessoal desse ou daquele governante (seja ele Cabral, Dilma, Paes, Alckmin,
Haddad, ou qualquer outro) a CAUSA da atuação repressiva do Estado, da falta de
negociação com a greve dos professores e etc. O materialismo histórico nos
propõe uma tese muito simples – ainda que decisiva – sobre o papel do Estado na
sociedade capitalista: ele é um instrumento de dominação da burguesia e demais
classes dominantes sobre o proletariado e o conjunto das classes dominadas.
As nossas lutas não encontrarão resposta em um
sistema comprometido pela crise do capitalismo, que só tende a endurecer a
opressão, a exploração e a repressão sobre os trabalhadores de todo o mundo. É
hora de retomar e desenvolver o marxismo-leninismo não enquanto uma “fórmula”
pronta, uma “doutrina” acabada, um “modelo” de revolução, mas enquanto teoria
capaz de compreender as contradições específicas de cada formação social e
guiar as lutas para a construção de uma sociedade sem classes. Afinal, como
diziam os cartazes das manifestações de junho, “amanhã vai ser maior”!
ANEXO – Como
transformar trabalhadores brasileiros em chineses?[xvii]
Os gráficos abaixo, coletados de diferentes fontes[xviii],
ilustram como se desenvolveu o mercado de trabalho dentro do período analisado
(de 1970 a 2012). Pode-se observar através do gráfico A que a maior parte dos
postos de trabalho gerados no Brasil foram com rendimentos médios inferiores a
1,5 salários mínimos, sendo que esta faixa salarial teve um salto muito
acentuado a partir dos anos 2000.
Gráfico A
Já o gráfico B ilustra a taxa de rotatividade dos
trabalhadores formais segundo a remuneração, indicando que a taxa de
rotatividade é maior justamente naqueles empregos de menor remuneração, e que
ela aumenta nesta faixa no ano de 2009.
Gráfico B
O gráfico C ilustra a evolução dos rendimentos médios e da
produtividade do trabalho. Como pode ser observado, mesmo nos períodos em que a
produtividade encontra-se estagnada, os salários estão sendo rebaixados, e
quando estes sofrem um processo de relativa recuperação (em 2009 chega-se ao
valor de 1995), a produtividade cresce em maior ou na mesma taxa, indicando um
aprofundamento da exploração da classe trabalhadora.
Gráfico C
O gráfico D ilustra a taxa de crescimento do rendimento médio
do trabalho segundo a escolaridade. Pode-se observar que nos últimos 20 anos
(1991 – 2012) houve uma retração de 4,84% na remuneração média dos
trabalhadores com 11 ou mais anos de ensino, o que também é visto no período de
2001 a 2012, enquanto a remuneração média dos trabalhadores com menos anos de
ensino aumentou.
Gráfico D
[i]
Coletivo Cem Flores - Luta de classes, crise do imperialismo e a nova divisão
internacional do trabalho. 2011. Brasil, 316pp.
[ii]
CEM FLORES, A crise do imperialismo é a
crise da divisão internacional do trabalho, Junho de 2009 (http://www.quefazer.org/criseImperialismo.html)
[iii]
Idem
[iv]
Idem
[v]
Idem.
[vi] Para
dados mais detalhados, sugerimos a leitura de outro texto mais recente, A Crise do Imperialismo Como Ofensiva do
Capital na Luta de Classes e a Necessidade da Contraofensiva da Classe Operária,
de dezembro de 2012: (http://cemflores.blogspot.com.br/2012/12/a-crise-do-imperialismo-como-ofensiva.html).
[vii]
Idem
[viii]
CEM FLORES, Formação econômico-social
brasileira: regressão a uma situação colonial de novo tipo, Fevereiro de
2006 (http://www.quefazer.org/formacao_economico-social%20brasileira.html)
[x]
Termos de troca é o resultado da divisão dos preços dos produtos exportados
pelos preços dos bens importados. Um aumento dos termos de troca representa um
ganho de “riqueza”, pois a mesma quantidade de produtos exportados pode
importar uma maior quantidade de produtos. Dizendo de outro modo, a mesma
quantidade de produto exportado representa lucro maior para o exportador e
todos os envolvidos na cadeia produtiva, maiores receitas fiscais para o
Estado, maior capacidade dos bancos em ofertar crédito, etc.
[xi] Crédito
ao consumo não é mais indutor do crescimento no Brasil. http://br.reuters.com/article/topNews/idBRSPE9B20B320131203?sp=true
[xii]
Sabemos que os “cofres públicos” não existem para tratar da melhoria das
condições de vida das massas trabalhadoras, mas sim para bancar a
“bolsa-capital”, seja na forma explícita dos repasses, desonerações, etc., seja
através das inúmeras formas implícitas de diminuir os “custos do trabalho”.
[xiii]
Para uma visão mais aprofundada do conjunto de pacotes que o governo Dilma vem
realizando em prol das classes dominantes brasileiras, ler CEM FLORES, Como o
Comitê Central da Burguesia decide as medidas de política econômica, Julho de
2012 (http://cemflores.blogspot.com.br/2012/07/como-o-comite-central-da-burguesia.html)
[xiv]
A tática Black Bloc que surge nos anos 1980, na Alemanha, como uma forma de
ação contra a instalação de usinas nucleares e de defesa em ocupações, acaba,
durante os anos 1990 e 2000, assumindo um caráter mais de ataque aos símbolos
do capitalismo (bancos, multinacionais, lojas de grife, etc.) como forma de
“denunciar” (sic!) as mazelas da sociedade capitalista.
[xv]
Basta um pequeno retrospecto da cobertura telejornalística da ‘grande imprensa’
e das subsequentes declarações oficiais dos vários governantes e medidas legais
tomadas pelo Estado desde junho para ver como funcionam “harmonicamente” todos
esses aparelhos quando o objetivo é criminalizar a luta dos trabalhadores.
[xvi]
A elaboração de uma ‘linha justa’ no trabalho de massa é um dos principais
aspectos do processo de autocrítica que as organizações que se reivindicam
comunistas insistem em postergar, devido à ‘cegueira ideológica’ que as colocam
a reboque de posições pequeno-burguesas ou mesmo burguesas, as quais têm as
eleições como única estratégia e tática. Uma profunda autocrítica das práticas
e posições políticas que há décadas só fazem afastar as massas de sua teoria
revolucionária ainda está por ser feita. Para uma discussão aprofundada sobre
as razões que impediram/impedem esta autocrítica, sugerimos o texto Convocatória para a reconstrução do partido
revolucionário do proletariado (Cem Flores, 2011).
[xvii]
Para uma discussão mais aprofundada sobre o rebaixamento do valor da força de
trabalho brasileira ler CEM FLORES, A
alquimia do governo Lula: como transformar trabalhadores brasileiros em
chineses, Maio de 2011 (http://www.quefazer.org/A%20alquimia%20do%20governo%20Lula%20-%20como%20transformar%20trabalhadores%20brasileiros%20em%20chineses.html)
[xviii]
GARCIA E GERÔNIMO, Crescimento econômico
e luta de classes: considerações atuais de um debate antigo, 2012,
SEPOCS-RIO 2012. IPEA, Comunicados do
IPEA – Nº 160 (Um retrato de duas décadas do mercado de trabalho utilizando a
PNAD), outubro de 2013.
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