quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Francisco Martins Rodrigues: sobre a atualidade do conceito de Imperialismo.


Essa postagem continua as publicações que o Blog Cem Flores vem fazendo para celebrar o primeiro século do livro de Lênin, “Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo”. Já publicamos trechos do livro de Lênin (http://cemflores.blogspot.com.br/2016/10/nos-100-anos-de-imperialismo-fase.html) e também o discurso de um dirigente do Partido Comunista da Grécia, KKE (http://cemflores.blogspot.com.br/2016/11/100-anos-de-imperialismo-fase-superior.html) sobre o imperialismo. Para cada uma dessas postagens, preparamos apresentações dos textos, buscando ressaltar seus aspectos mais importantes e debater suas formulações, sempre visando discutir a atualidade do conceito leninista de Imperialismo.

O blog Escritos de uma Vida (https://franciscomartinsrodrigues.wordpress.com/) tem publicado uma grande quantidade de escritos do dirigente comunista Francisco Martins Rodrigues[1]. Em 1º de agosto desse ano, publicou o artigo “Os Clássicos e o Imperialismo: que atualidade?” (https://franciscomartinsrodrigues.wordpress.com/2016/08/01/os-classicos-e-o-imperialismo-que-actualidade/), de 2003, cujo objetivo também era o de “continuar o debate sobre estas novas questões e procurar indicar alguns traços fundamentais da nossa época” a partir da obra de Lênin, “síntese paradigmática da interpretação do imperialismo”. Ou seja, a mesma discussão que estamos travando entre os nossos camaradas e que queremos estimular entre os leitores: discutir a atualidade e a necessária atualização da análise leninista do Imperialismo e seu caráter imprescindível para o debate comunista sobre a crise e o movimento operário atuais.

Os Cinco Traços Fundamentais do Imperialismo e sua Atualidade

Partindo do conceito leninista de Imperialismo – o capitalismo em sua fase monopolista –, Francisco Martins Rodrigues busca analisar o funcionamento dos monopólios e seu alcance internacional nos tempos atuais. Destaca que as “corporações transnacionais passaram a extrair diretamente, e de maneira generalizada, o valor fora de suas fronteiras nacionais, tornando-se exploradoras diretas tanto no centro como na periferia capitalista”, contrapondo essa característica ao período anterior, de exportação de mercadorias ou capitais. Essa “unificação de estratégia” do “grande capital” diante da globalização, sua “remonopolização global”, serve aos interesses de “impor uma nova disciplina ao mundo do trabalho, mas principalmente para contrariar a tendência decrescente da taxa de lucro”. Além de contribuir na redefinição de “uma nova partilha econômica do mundo”. 

Para analisar o funcionamento contemporâneo do Imperialismo, é fundamental realizar uma profunda investigação sobre as formas concretas e contemporâneas de atuação dos monopólios. Possivelmente identificando alguns traços gerais dessa mesma característica que Francisco Martins Rodrigues analisou, apontamos na publicação da apresentação dos trechos do livro de Lênin que:

a atuação desses monopólios nas últimas décadas efetivamente criou espaços transnacionais de montagem e produção de mercadorias, com as diversas etapas de seu beneficiamento podendo ocorrer em diversos países e continentes. O resultado óbvio desse processo é uma forte tendência à equalização e ao rebaixamento das condições de produção, do ponto de vista do proletariado e das demais classes dominadas, ao redor do mundo”. (http://cemflores.blogspot.com.br/2016/10/nos-100-anos-de-imperialismo-fase.html).

A atuação dos grandes monopólios na economia mundial é, efetivamente, global. Essa atuação se estrutura, pelo menos, por meio de três modalidades:

·      Estabelecimento de unidades produtivas desses monopólios em diversos países: por meio de filiais ou subsidiárias ou em “parceria” com capitais locais (joint-ventures). Essas unidades podem tanto atuar nos setores produtivos originais da matriz, como diversificar a produção para outros setores ou ainda se especializar em estágios específicos da produção/comercialização de mercadorias.

·      Conformação de extensa cadeia internacional de fornecedores de matérias-primas, insumos, partes e peças: essa atividade, na divisão internacional do trabalho estruturada pelos monopólios, termina por ser, fundamentalmente, localizadas nos países dominados. Ou seja, trata-se de papel desempenhado pelas burguesias desses países, sempre nos estritos termos determinados pelas cadeias produtivas dos monopólios.

·      Rede global de distribuição e comercialização.

Como se vê, nessa atuação global dos monopólios capitalistas, o trabalho mais intensamente qualificado (e suas patentes, royalties, “propriedade intelectual” etc.) permanece, principalmente, na matriz, localizada, de maneira geral, nos países imperialistas. Às suas subsidiárias e seus fornecedores, especialmente nos países dominados, cabem diferentes etapas de transformação e/ou fornecimento de insumos de acordo com rígidas especificações da matriz e de montagem da mercadoria final que será, depois, exportada para o mundo inteiro, partilhado em regiões específicas de atuação.

Além das tendências à equalização e ao rebaixamento das condições de reprodução da classe operária, com o consequente aumento de sua exploração (extração de mais-valia), já mencionados, esse funcionamento efetivamente global dos monopólios capitalistas implica também, em relação a uma nova partilha econômica do mundo, em outras características abaixo relacionadas, características essas apenas enumeradas, as quais é preciso confirmar e desenvolver, tanto empírica quanto analiticamente:

·      Desindustrialização nos países imperialistas: deslocamento da produção fabril para as unidades dos monopólios no exterior, ou a cargo da burguesia daqueles países ou, ainda, para as joint-ventures, com diminuição da classe operária nos países imperialistas e forte tendência ao rebaixamento dos salários em geral. Reforço dos componentes parasitário e rentista da burguesia dos países imperialistas. Reforço de tendências nacionalistas, protecionistas, xenófobas e fascistas na burguesia dos países imperialistas e em setores das camadas médias e mesmo do operariado.

·      Reconfiguração da estrutura produtiva dos países dominados: na qual buscamos identificar duas tendências principais:

§  o deslocamento da produção antes realizada nos países imperialistas, implicando maior industrialização em alguns países dominados, ainda que circunscrita a setores específicos, com o consequente crescimento da classe operária;
§  a integração na cadeia global de fornecimento de peças, componentes,  matérias-primas e insumos, em geral implicando maior especialização na produção e beneficiamento de produtos primários.

Em ambos os casos reconfiguração para adequar sua estrutura produtiva e condições de reprodução às exigências dos monopólios, ainda que os impactos concretos e específicos tendam a ser radicalmente distintos.

·      Tendência contrarrestante à queda da taxa de lucro: o capital monopolista, em sua atuação mundial, busca elevar sua taxa de lucro mediante:

§  a utilização de força de trabalho com custos mais baixos de reprodução e a produção em maior escala;
§  uma maior capacidade de determinar políticas aos governos dos países onde atua para obtenção de um sem-número de benefícios tributários, creditícios, entre outros;
§  por fim, mas não menos importante, pela criação de inúmeros mecanismos internos às diversas unidades desses monopólios pelo mundo todo para aumentar seus lucros (preços de transferência, sub ou sobre-faturamento nas vendas/compras intra-grupo, centralização internacional das atividades de comercialização ou da tesouraria, atuação em paraísos fiscais, etc.).

·      Agravamento da tendência à superacumulação de capitais e à superprodução de mercadorias, portanto à crise do capital: a atuação efetivamente global dos monopólios capitalistas pressupõe sua expansão em proporções não vistas anteriormente, reforçando, com isso, a tendência do capitalismo a crises[2].

Essa atuação dos monopólios que destacamos acima impacta diretamente as maneiras como ocorre a partilha do mundo entre eles. Além da “formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si” (Lênin), essa partilha ocorre, também, dentro de cada grupo monopolista. No primeiro caso, um “acordo de cavalheiros” (sic!) – cuja duração é sempre provisória – busca eliminar a concorrência entre os monopólios, separando os países ou suas zonas de atuação. No segundo, isso ocorre internamente a cada monopólio, com cada unidade ao redor do mundo sendo responsável ou por produzir um produto específico ou por atender um nicho de mercado distinto ou por exportar sua produção para uma parcela específica do planeta. Em ambos os casos, por formas distintas, busca-se reduzir a concorrência entre capitais e obter superlucros monopolistas.

Note-se de passagem que o cenário acima descrito, supondo-o capaz de reproduzir adequadamente, ainda que apenas em seus traços muito gerais, o funcionamento da economia mundial imperialista e seus monopólios, não permite qualquer espaço para uma suposta atuação autônoma, independente, soberana, das burguesias nacionais dos países dominados. A essas “burguesias nacionais” (sic!) cabe apenas o papel de tentar encontrar as formas de sua integração ao circuito internacional de produção comandado pelos monopólios. Esse é um tema inescapável, que devemos buscar debater e aprofundar para travar a luta sem tréguas contra as posições reformistas.

Mas voltemos a Francisco Martins Rodrigues. Outro ponto destacado por ele são as características recentes da exportação de capitais. Um aspecto é a vinculação dessa exportação de capitais à expansão das unidades produtivas dos monopólios mundo afora. Nos termos do autor: “somente com a internacionalização da produção é que os capitais migraram para  a construção de fábricas em alguns países da periferia”. Essa característica, no entanto, seria secundária, pois “o aspecto mais importante das exportações de capitais hoje  é que não se verifica na esfera produtiva, mas essencialmente na área financeira”. Por fim, a absoluta maioria desse capital exportado “não está direcionado aos países da periferia, mas aos países centrais”. Esse fato causaria, para o autor, a necessidade de uma nova leitura das “trocas desiguais” e da “relação centro-periferia”.

Ainda que a análise concreta do texto tenha ficado datada (centralidade do mercado de moedas de Londres, reciclagem de petrodólares, “privatização” da liquidez internacional), as características mais gerais apontadas por Francisco Martins Rodrigues se mantêm e é necessário aprofundar seu estudo, inclusive o levantamento dos dados empíricos disponíveis. Um importante exemplo disso é o papel determinante da atuação global dos monopólios nas exportações de capitais.

Os chamados investimentos estrangeiros diretos – exportação de capitais por parte de um monopólio para criar ou expandir suas unidades produtivas em outro país, ou ainda centralizar capital – atingiram US$ 1,76 trilhão apenas no ano de 2015 (sendo que aproximadamente US$ 1 trilhão se originaram e foram destinados aos países imperialistas), dos quais quase metade, US$ 720 bilhões, destinou-se às chamadas “fusões e aquisições”. O estoque total dessa exportação de capitais interna aos monopólios atinge US$ 25 trilhões (US$ 19,4 trilhões originados dos países imperialistas e US$ 16 trilhões destinados a eles), uma vez e meia o PIB dos Estados Unidos. Em função disso, estima-se que aproximadamente um terço das exportações e importações mundiais, principalmente no caso dos países imperialistas, ocorra entre as diversas unidades de um mesmo monopólio espalhadas pelo mundo. Se considerarmos o comércio exterior desses monopólios com outras firmas, acrescentaríamos outra terça-parte àquele montante. Ou seja, os monopólios controlam diretamente (ou participam de) por volta de dois terços do comércio mundial de mercadorias[3] que, em 2014, somou US$ 18,5 trilhões[4].

Esses números dão apenas uma primeira impressão geral do papel dos monopólios nas exportações de capital, que, no Imperialismo, vão muito além disso. Devem, necessariamente, ser incluídos nessa análise o papel dominante do capital financeiro, a geração e reprodução de capital fictício e os aparelhos financeiros internacionais do capital (que Francisco Martins Rodrigues chama de “Comitê Político-Financeiro” do Imperialismo), o FMI, o Banco Mundial e outros, além da expansão internacional das atuações dos Tesouros Nacionais e dos Bancos Centrais dos países imperialistas após 2008[5].

Para tentar quantificar um aspecto – digamos mais tradicional – dessa exportação de capitais podemos utilizar uma base de dados do Banco Mundial, que divulga estatísticas de dívida externa para um conjunto de aproximadamente 75 países. Em junho de 2016, o total do endividamento externo dessa amostra de países atingiu US$ 76,5 trilhões (quase um quarto desse valor nos Estados Unidos e 54% nos cinco maiores “devedores”: EUA, Inglaterra, França, Alemanha e Holanda)[6].

Passando às bolsas de valores, devemos acrescer às já várias dezenas de trilhões de dólares acima citados outro tanto. O Banco Mundial estima a chamada “capitalização de mercado de empresas listadas em bolsas” em US$ 61,8 trilhões em 2015, referentes a 43,5 mil empresas, valor aproximadamente equivalente ao PIB global[7].

Para passarmos agora aos montantes realmente grandes de capital fictício, temos que buscar quantificar os mercados globais de derivativos financeiros, de câmbio e de juros. A melhor fonte para isso parece ser outro componente do “Comitê Político-Financeiro” do Imperialismo, o Banco de Compensações Internacionais, sediado na Suíça. De acordo com seu levantamento mais recente, o mercado global de câmbio movimenta US$ 5,1 trilhões e o de taxas de juros, US$ 2,7 trilhões. POR DIA! O montante total desses contratos de derivativos financeiros (o chamado “valor nocional”) alcança inacreditáveis US$ 544,1 trilhões em abril de 2016, depois de chegar a US$ 696,1 trilhões em 2013[8]. Ou seja, por volta do décuplo do PIB mundial.

Apesar de que o esforço por quantificar a importância dos monopólios, das exportações de capital e do capital financeiro na economia mundial seja necessário, o que é de fato imprescindível é aprofundar e atualizar a teoria leninista para desenvolver uma explicação geral do funcionamento do sistema imperialista, da economia mundial, nos dias de hoje.

Francisco Martins Rodrigues também analisa a nova partilha do mundo entre as potências. Nesse ponto, a análise das contradições interimperialistas (e da tendência de seu agravamento) aponta, por um lado, para a busca, por parte dos Estados Unidos, de constituírem-se em “potência hegemônica incontestável”, ligando esse objetivo à “recolonização sofisticada dos países da periferia” e, por outro, para a “formação dos blocos econômicos nas principais regiões econômicas do mundo”.

Começando por esse último ponto, nessa mais de uma década desde o texto que estamos apresentando, houve um grande reforço dos blocos econômicos em oposição à posição de “potência hegemônica incontestável” dos Estados Unidos, destacadamente a União Europeia e o bloco formado ao redor da China.

Na Europa, foram eliminadas as moedas e as políticas monetárias nacionais (Área do Euro) e unificadas diversas regulações sobre mercado de trabalho, imigração, investimentos etc. (União Europeia), ao mesmo tempo que o bloco se ampliava incorporando os antigos países “socialistas”. Isso significou, por um lado, eliminar os anteparos e as proteções ainda existentes das burguesias de cada um daqueles Estados à penetração dos capitais das burguesias dos demais (e expandir esses anteparos e proteções agora contra os capitais extra-europeus) e, por outro, a equalização e o rebaixamento das condições de vida das classes dominadas nos países europeus. Hoje, com a prolongada crise do capital no continente, parece que observamos um duplo e contraditório cenário na Europa: i) fortalecimento do papel hegemônico alemão em termos econômicos, financeiros e ideológicos, mas ii) crescimento, entre setores das burguesias e das camadas médias europeias, e em alguma medida também entre os trabalhadores, das tendências ao nacionalismo e ao protecionismo, que se constituem em oposição à chamada globalização (em geral) e se opõem especificamente à União Europeia ou seja, em grande medida, à Alemanha e suas políticas econômicas, monetárias e fiscais.

No caso do bloco ao redor da China, sua conformação e seu fortalecimento nas duas últimas décadas decorrem do papel central que o país vem crescentemente ocupando no sistema imperialista mundial, já constituindo a segunda maior economia do planeta, o maior exportador mundial, o detentor das maiores reservas internacionais do mundo etc. Esses elementos, entre outros, nos colocam como problema importante a debater “o caráter imperialista da China e sua posição no sistema imperialista”, como apontamos na primeira apresentação dessa série de textos.

Em relação ao bloco produtivo-comercial-financeiro ao redor da China, podemos dizer que o mesmo envolve (pelo menos) todo o Sudeste Asiático. Pelo aspecto produtivo, sua conformação se iniciou com os demais países fornecendo insumos, partes e peças para a produção e montagem final chinesa, com destino à exportação. A evolução da indústria e dos salários chineses têm impulsionado a transferência das etapas finais da produção de bens de consumo assalariado para esses países, em parte via exportação de capitais da China. Pelo lado institucional e financeiro, diversas iniciativas têm sido tomadas para consolidar a influência chinesa na sub-região (por exemplo, a Iniciativa Chiang Mai, de utilização de reservas internacionais; o Programa de Cooperação Econômica da região do Mekong, de investimentos; o Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura; a nova Rota da Seda; a Parceria Econômica Regional Abrangente; entre um sem número de outras)[9]. Dessa forma, os capitais chineses forçam “uma nova partilha econômica do mundo” e promovem uma “recolonização” dos países sob sua esfera de influência, tanto por força de seus capitais produtivos quanto de empréstimos, fato esse que deixa de ser privilégio dos capitais dos Estados Unidos.

Já em relação à “recolonização sofisticada dos países da periferia”, mencionada por Francisco Martins Rodrigues, gostaríamos de remeter os camaradas e os leitores para nosso texto de quase uma década atrás, que analisa essa tendência para o caso brasileiro: Formação econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de novo tipo (https://sites.google.com/site/cemescolasrivalizem/home/textos-novos/Regress%C3%A3o.pdf?attredirects=0&d=1).

Por fim, o imperialismo é um sistema dinâmico, movido pelas suas próprias contradições (além dos fatos contingentes). Nesse sentido, não existe “potência hegemônica incontestável”, como também não há “controle absoluto” dos países dominados e nem, portanto, “partilha definitiva” dos mesmos.

Completando a análise dos cinco traços fundamentais do Imperialismo, observamos que Francisco Martins Rodrigues apenas menciona brevemente o capital financeiro, para ressaltar uma “configuração inteiramente nova”, não mais “movida simplesmente por uma nova fusão do capital bancário com o capital industrial”, mas agora perpassando “praticamente todas as fases do ciclo do capital”. Em nossa avaliação, para o autor, essa nova configuração está ligada ao extraordinário aprofundamento da “tendência à decomposição e ao parasitismo”, próprias do Imperialismo.

Nos parece que Francisco Martins Rodrigues se apercebeu das novas formas e instituições criadas ou derivadas do capital bancário da época de Lênin e sua imbricação com o capital industrial (ou produtivo, de maneira mais geral). Essas instituições também conseguem, assim como os bancos, agrupar o dinheiro existente nas mãos de diversas empresas, burgueses e na camada média e transformá-lo em capital de empréstimos ou de investimentos, sejam produtivos ou em capital fictício. Estamos falando especificamente dos diversos tipos de “fundos” existentes no capitalismo atual: de pensão, mútuos, de hedge, de private equity etc. Economistas burgueses denominaram essas instituições de “sistema bancário-sombra” (shadow banking system). Segundo as estimativas disponíveis, esses fundos podem gerir até US$ 80 trilhões, representando um quarto do sistema bancário[10]. Essas instituições demandam investigação mais demorada para verificar seu papel na gestão do capital fictício global, sua imbricação com os monopólios e influência na definição de variáveis econômicas fundamentais como taxas de juros e de câmbio.

Neste ponto como em alguns outros ao longo do texto, Francisco Martins Rodrigues utiliza termos e conceitos que já estavam bastante em voga à época ou que passariam nesses últimos 13 anos. Estamos falando, entre outros, de “centro-periferia”, que o FMI e o Banco Mundial “romperam com seus estatutos originários”, de “desregulamentação” e de “interesses bancários desregulados”, da “mera especulação com o dinheiro” e da “financiarização da riqueza”. Na nossa avaliação, a utilização desses termos não contribui para um avanço na formulação marxista sobre o Imperialismo nem na interpretação do estado atual da economia mundial.

A relação “centro-periferia” está indissoluvelmente associada a uma vertente da economia burguesa identificada com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), órgão das Nações Unidas, cujos principais formuladores foram Raúl Prebisch e Celso Frutado, e que buscava formular uma estratégia para o desenvolvimento capitalista dos países da “periferia” ou “subdesenvolvidos”.

Afirmar que o FMI e o Banco Mundial romperam com seus estatutos originários para se transformar em “instrumentos do neoliberalismo” fica próximo de validar uma hipótese de que, antes disso, ambos seriam instrumentos de desenvolvimento (capitalista, por decerto) e estabilização da economia mundial, na esteira dos debates entre Harry Dexter White e John Maynard Keynes em Bretton Woods. O mesmo para a crítica à “desregulamentação” ou aos “interesses bancários desregulados” – que seria o oposto da “regulação keynesiana” do pós-guerra – que se conclui com uma denúncia à “mera especulação com o dinheiro” ou, resumidamente, ao “processo de financiarização da riqueza”. O conceito de “financeirização” e sua crítica estão muito ligados, talvez indissoluvelmente, a uma oposição (absoluta?) entre capital produtivo e capital financeiro (não no conceito leninista), como, por exemplo, na hipótese de que o neoliberalismo, “núcleo central da sua ideologia” [i.e, dos capitalistas], “está cada vez mais intensamente a ser contestado ... até por segmentos burgueses que antes o apoiavam entusiasticamente”.

Sobre esses temas, embora haja um conjunto de fatos da evolução do sistema imperialista que aponta nas direções indicadas (revisão dos estatutos do FMI/Banco Mundial, desregulamentação e crescimento da autonomização do capital-dinheiro), nos parece que é mais fecunda a interpretação desses fatos como sendo a adaptação das políticas econômicas às necessidades e possibilidades da acumulação de capital (questão que ainda está por desenvolver). Além disso, um conceito marxista ausente do texto e que nos parece necessário ao desenvolvimento da análise que precisamos fazer é o de capital fictício. O uso de outros conceitos e o arcabouço teórico que eles trazem nos parece ir na direção oposta da análise leninista que estamos tentando desenvolver.

Conclusões de Francisco Martins Rodrigues: crise do capitalismo e acirramento da luta de classes

A partir da intensificação do parasitismo e do rentismo – “expressão degenerada da acumulação de capitais” – Francisco Martins Rodrigues conclui que "haverá inevitavelmente um momento de ruptura desse processo para compatibilizá-lo com a economia real, o que deverá ter consequências dramáticas tanto para especuladores como para a ordem econômica capitalista". Além disso, a “globalização produtiva, com o seu imenso potencial, tende à crise pela sobreprodução de mercadorias, oriunda da superacumulação de capitais”. Portanto, “por qualquer dos ângulos que se possa observar a economia contemporânea, há uma perspectiva de crise em larga escala”. Isso em 2003, quando o capitalismo acabara de sair da recessão de 2001-2002 e se iniciava o período de expansão pré-crise de 2008. Acertou em cheio, camarada!

Nesse quadro de “crise em larga escala”, Francisco Martins Rodrigues afirma, com precisão, o papel decisivo da classe operária: “Esta classe será a vanguarda da luta pelas transformações sociais, não só pelo seu papel no interior da produção, mas porque a nova conjuntura necessitará de sujeitos políticos mais preparados e com peso suficiente para desferir golpes decisivos nos inimigos de classe”.

Outra importante conclusão é que, na conjuntura atual da luta de classes, para o proletariado a “via institucional, como caminho privilegiado para as mudanças, está esgotada”. Afirmava mais: “Privilegiar apenas esse caminho significa optar pela frustração periódica, pois a cada embate político, como no caso das eleições, a burguesia utilizará todo o seu poder económico, bem como os métodos de manipulação para impor os seus interesses, restando às forças populares apenas a lamentação e a perplexidade”.

Mostra ainda a possibilidade do surgimento de uma nova situação revolucionária, nessa conjuntura de aprofundamento do conjunto das contradições no mundo: “Em síntese, apesar da derrota da primeira experiência de socialismo, o sistema capitalista não se transformou num referencial para a humanidade, nem destruiu a possibilidade de construção de uma sociedade sem classes. Há a possibilidade real de que a crise oriunda do fracasso do neoliberalismo abra uma nova situação revolucionária, onde a questão do socialismo reapareça como uma vitalidade bem maior da que ocorreu com o aparecimento dos monopólios, só que agora livre das deformações e dos desvios que ocorreram no recente passado socialista”.

Dessas condições, uma única conclusão, necessária, se impõe: “Daí a urgência de nos dotarmos de um programa, duma táctica e duma  estratégia revolucionárias, no sentido de darmos corpo a uma vanguarda operária comunista,  que  – quando as condições objectivas o permitirem – se lance ao assalto do poder, destrua o aparelho de Estado burguês, instaurando em seu lugar a ditadura do proletariado, mil vezes mais democrática que a mais democrática das repúblicas burguesas”.




Os clássicos e o imperialismo: que actualidade?

Francisco Martins Rodrigues

É necessário entender o capitalismo contemporâneo com a cabeça aberta, sem os dogmas e estereótipos que geralmente marcam as pessoas que não gostam de encarar o novo.

Lenine teve a coragem e a grandeza de verificar que a época imperialista diferia do capitalismo concorrencial descrito por Marx. Portanto, merecia não só um novo diagnóstico, mas uma nova teoria para que se pudesse compreender a época dos monopólios. Tanto Marx como Lenine escreveram sobre o seu tempo; não tinham obrigação nem estavam interessados em adivinhar o futuro. Mas o lastro no qual desenvolveram as suas teorias, o método dialéctico, é uma fonte fértil para que os marxistas da nossa época dêem prosseguimento à sua obra teórica. O objectivo deste artigo é continuar o debate sobre estas novas questões e procurar indicar alguns traços fundamentais da nossa época.

Elegendo a obra de Lenine, O imperialismo, estádio supremo do capitalismo, como síntese paradigmática da interpretação do imperialismo oriundo da segunda revolução industrial, procuraremos analisar os eixos fundamentais daquela obra para aferir se ainda possui aderência à realidade actual.

Lenine definiu cinco traços fundamentais que caracterizavam a nova fase do capitalismo:

1) a concentração da produção e do capital e o aparecimento dos monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida económica;

2) a fusão do capital industrial com o capital bancário e o aparecimento da oligarquia financeira;

3) a exportação de capitais, ao contrário da exportação de mercadorias;

4) a formação das associações monopolistas que partilham economicamente o mundo entre si;

5) a partilha territorial do mundo entre as potências mais importantes. Lenine considerava ainda que o imperialismo não era uma nova formação socioeconómica, mas a fase superior do capitalismo, em que se aguçariam todas as contradições do capital. Nesse sentido, Lenine afirmava que esta fase seria marcada pelo capitalismo parasitário, em decomposição e agonizante, a antecâmara do socialismo. Vejamos como se apresenta cada uma dessas características no mundo actual.

A concentração da produção e do capital continuam a sua marcha histórica, como Marx já havia identificado anteriormente, baseado na própria lógica da acumulação. No entanto, o que distingue a época actual do período de Lenine é que as corporações transnacionais passaram a extrair directamente, e de maneira generalizada,  o valor fora das suas fronteiras nacionais, tornando-se exploradoras directas tanto no centro como na periferia capitalista, ao contrário do que acontecia anteriormente quando se apropriavam da mais-valia mediante a exportação de mercadorias ou a exportação de capitais.

Isso poderá redefinir uma nova partilha económica do mundo, possivelmente em função da área de influência da Tríade  a partir das suas regiões de origem, e dar um carácter novo à luta pela hegemonia entre os blocos do grande capital.

Por outras palavras, diante dos novos fenómenos oriundos da globalização, impôs-se novamente a necessidade de uma remonopolização global, de forma a que o grande capital pudesse unificar novamente a sua estratégia, não só para se reorganizar diante da globalização para impor uma nova disciplina ao mundo do trabalho, mas principalmente para contrariar a tendência decrescente da taxa de lucro que caracterizava a conjuntura após a segunda guerra mundial. Ou seja, a qualidade desse processo não é movida simplesmente por uma nova fusão do capital bancário com o capital industrial, mas por uma configuração inteiramente nova, que envolve praticamente todas as fases do ciclo do capital.

A exportação de capitais hoje difere significativamente do período da segunda revolução industrial e mesmo do período de ouro do Welfare State. No período inicial do imperialismo, a exportação de capitais era destinada à construção de estradas de ferro, minas, portos e outros equipamentos de infraestrutura, sem que houvesse grandes investimentos na área fabril, até mesmo porque não era interessante para os países líderes desse processo a industrialização da periferia. Isso pode ser constatado pelo facto de que apenas alguns desses países conseguiram realizar a sua industrialização, ainda que tardiamente. Somente com a internacionalização da produção é que os capitais migraram para  a construção de fábricas em alguns países da periferia, mas aí já se tratava de um processo novo, onde a internacionalização da produção conduzia a burguesia a extrair o valor directamente nestas regiões.

Outro aspecto que chama a atenção na exportação de capital actual é o facto de que cerca de 80% do investimento directo estrangeiro não está direccionado aos países da periferia, mas aos países centrais, ressaltando-se ainda que vem decrescendo a participação dos países periféricos neste tipo de investimento. Se a exportação de capital se está desenvolvendo centralmente entre os próprios países imperialistas, a relação de subordinação e de trocas desiguais deve ter uma nova leitura, e não ficar restrita à tradicional subordinação entre os países imperialistas do passado e as suas colónias ou nações satélites. É bem verdade que a subordinação é a lógica da relação centro-periferia, mas o montante de recursos dessas operações direcciona o centro do fenómeno para outras regiões e não para a periferia.

No entanto, o aspecto mais importante das exportações de capitais hoje  é que não se verifica na esfera produtiva, mas essencialmente na área financeira. A partir do final dos anos 60, constata-se crescentemente a privatização da liquidez internacional, ao contrário do período anterior, quando a maioria dos empréstimos era oriunda de entidades financeiras internacionais. Essa privatização foi fruto de um movimento do capital norte-americano no sentido de ultrapassar as leis restritivas a saídas de capitais do País. Para tanto, os bancos começaram a criar títulos com valor em dólar americano, mas emitidos fora dos EUA, mecanismo que foi crescendo como uma bola de neve e formando um peculiar mercado de moedas, que posteriormente transformaria a Europa e, especialmente, Londres, no principal centro financiador das actividades mundiais.

A internacionalização do capital bancário consolidou-se com a criação dos consórcios internacionais e das agências insulares nos paraísos fiscais. Este conjunto de factores provocou uma verdadeira explosão dos negócios bancários,  que o aumento dos preços do petróleo praticados pela OPEP fez crescer exponencialmente. Os bancos, já experientes neste tipo de serviço, iniciaram uma extraordinária reciclagem dos petrodólares, ampliando de maneira acentuada os empréstimos para o terceiro mundo. O Mercado de eurodólares começou a descobrir que era mais vantajoso emprestar para nações do que para empresas e assim transformou-se no principal financiador das operações da dívida externa desses países, gerando um débito gigantesco e aprisionando essas nações nas malhas dos interesses bancários desregulados.

É importante ressaltar que, com o mercado de eurodólares, se processa uma mudança profunda na exportação de capitais, que viria a consolidar-se com a desregulamentação dos governos Reagan-Thatcher. Para ampliar os seus lucros a oligarquia financeira mudou o seu centro de gravidade, reduzindo os investimentos directos em função do capital de empréstimos, o que amplia o carácter parasitário do imperialismo. Se o centro de gravidade da exportação de capitais já estava alterado com a formação da dívida externa dos países da periferia, a desregulamentação veio intensificar de maneira extraordinária esse processo, que hoje se constitui de mera especulação com o dinheiro.

Outro dado novo na exportação de capitais é o facto de que as instituições multilaterais, formadas na Conferência de Bretton Woods, romperam com os seus estatutos originários e  transformaram-se pura e simplesmente em instrumentos do neoliberalismo, apoiando o frenesim financeiro em curso no mundo e impondo políticas destrutivas nos países da periferia. Desde a crise da dívida externa, a partir de 1982 com a moratória mexicana, que o Banco Mundial e, principalmente, o Fundo Monetário Internacional se transformaram numa espécie de Comité Político-Financeiro do bloco de forças sociais que passaram a hegemonizar a economia mundial e que têm na especulação financeira o centro da sua actividade económica.

A partilha económica e territorial do mundo também se desenvolve de maneira bastante diferenciada do período inicial do imperialismo. No que se refere à territorialidade, há uma tentativa desesperada dos Estados Unidos no sentido de se transformarem numa potência hegemónica incontestável e, a partir desta posição, tirarem o máximo proveito da nova ordem económica internacional e realizar uma recolonização sofisticada dos países da periferia, onde o aspecto central seria o controlo absoluto destas economias, se possível com a instituição da dolarização generalizada.

Ainda em relação à partilha territorial, está em curso, com uma série de problemas, a formação dos blocos económicos nas principais regiões económicas do mundo. Estes blocos reflectem, por um lado, os problemas e contradições da luta interburguesa, e por outro, uma surda luta de resistência contra a tentativa norte-americana de construir uma ordem unipolar.

Do ponto de vista económico, a partilha definitiva também será resultado da luta surda pela hegemonia em curso nos países centrais. Mas o processo intenso de megafusões e incorporações que vem sendo realizada, especialmente na década de 90, indica uma remonopolização da burguesia e a tentativa de cosmopolitização, se não plena, pelo menos regional. A configuração do controle dos mercados, tanto no que diz respeito ao investimento produtivo quanto financeiro, vai depender não só do sucesso da globalização produtiva, mas principalmente do resultado do processo de financiarização da riqueza imposto pelo bloco de forças no poder nos países centrais e da periferia.

Finalmente, a tendência à decomposição e ao parasitismo, identificado por Lenine como sendo uma das características da oligarquia financeira mantém a sua essência, mas foi  aprofundada de maneira extraordinária e revela aspectos novos e relevantes. A oligarquia financeira ampliou o seu parasitismo e muitos Estados imperialistas transformaram-se em nações ‘rentistas’, o que lhes permite ampliar o poder regulador e orientador dessa nova fase do capital. A transferência de recursos dos países da periferia para os países centrais nas duas últimas décadas, por conta principalmente dos mecanismos financeiros impostos pela nova elite no poder, pode ser considerada muito maior que toda a extorsão realizada no período colonial, o que por si só dá uma dimensão do ‘rentismo’ institucionalizado na nossa época.

Como se sabe, a financiarização da riqueza ou o rentismo institucionalizado é uma expressão degenerada da acumulação de capitais e demonstra um aprofundamento sem precedentes do parasitismo da nova burguesia. A “valorização” da riqueza pela via financeira cria uma contradição entre a velocidade de expansão da esfera financeira, o crescimento do sector produtivo e o poder aquisitivo das massas, tornando assim a defesa da riqueza por esta via uma aventura sem futuro, pois haverá inevitavelmente um momento de ruptura desse processo para compatibilizá-lo com a economia real, o que deverá ter consequências dramáticas tanto para especuladores como para a ordem económica capitalista.

Dilemas e perspectivas

O capitalismo, ao contrário do que imaginavam os clássicos e os revolucionários de todo o mundo, não foi à bancarrota. Pelo contrário, no final do século XX conseguiu demonstrar ainda uma enorme vitalidade, não só na implosão das primeiras experiências “socialistas”, mas também ao realizar uma reestruturação produtiva e uma nova configuração financeira, que vêm produzindo uma mudança de qualidade neste velho modo de produção.

No entanto, o ciclo de euforia dos capitalistas que se abriu na década de 90 está a esgotar-se, pois o núcleo central da sua ideologia, o neoliberalismo, está cada vez mais intensamente a ser contestado não só por expressivos sectores da população, mas até por segmentos burgueses que antes o apoiavam entusiasticamente. O produto social destas duas décadas, pela sua agressividade contra o movimento operário, pela sua arrogância contra os valores humanos e sociais, pela imensa concentração de rendimento e ampliação da barbárie social, tornou mais aberta e mais clara a luta de classes.

Objectivamente, o sistema capitalista está potencialmente mais fraco que no período do imperialismo clássico. As modificações que o sistema sofreu nesta nova fase aprofundaram todas as suas contradições, podendo afirmar-se que hoje estamos muito mais próximos do socialismo, em termos  gerais, do que no período em que Lenine escreveu O Imperialismo. A globalização produtiva, com o seu imenso potencial, tende à crise pela sobreprodução de mercadorias, oriunda da superacumulação de capitais. Caso os capitalistas da área produtiva queiram regular a produção, desviando recursos para a esfera financeira, e assim evitando a sobreprodução, não poderão desvencilhar-se da armadilha das contradições, uma vez que a fuga para frente na esfera financeira, apenas incrementará a crise nesta área. Por qualquer dos ângulos que se possa observar a economia contemporânea, há uma perspectiva de crise em larga escala. Isso não significa que o capitalismo está no fim, mas indica que o volume de contradições é tão grande que a crise poderá originar uma situação revolucionária.

Estes momentos históricos de transição são pródigos de acontecimentos inesperados, tanto no campo social como no político. Ora, numa situação dessa ordem, a tendência principal é a de que, quanto maior for a crise, maiores possibilidades terão as classes trabalhadoras para disputar a hegemonia com a burguesia. A reestruturação produtiva está a  criar uma classe operária mais moderna, mais especializada e com muito mais iniciativa no interior das fábricas. Esta classe será a vanguarda da luta pelas transformações sociais, não só pelo seu papel no interior da produção, mas porque a nova conjuntura necessitará de sujeitos políticos mais preparados e com peso suficiente para desferir golpes decisivos nos inimigos de classe.

Além disso, a diversidade de formas de exploração, a agressividade social do capitalismo e a desmoralização das suas instituições seculares podem abrir possibilidades para que as classes trabalhadoras  encaminhem as suas lutas de forma diferente. Um dos factores que mais se destaca nesta nossa época é a clara limitação das lutas institucionais. Afinal, não se pode combater esta nova fase do imperialismo com as armas da fase anterior. A via institucional, como caminho privilegiado para as mudanças, está esgotada. Privilegiar apenas esse caminho significa optar pela frustração periódica, pois a cada embate político, como no caso das eleições, a burguesia utilizará todo o seu poder económico, bem como os métodos de manipulação para impor os seus interesses, restando às forças populares apenas a lamentação e a perplexidade.

Em síntese, apesar da derrota da primeira experiência de socialismo, o sistema capitalista não se transformou num referencial para a humanidade, nem destruiu a possibilidade de construção de uma sociedade sem classes. Há a possibilidade real de que a crise oriunda do fracasso do neoliberalismo abra uma nova situação revolucionária, onde a questão do socialismo reapareça como uma vitalidade bem maior da que ocorreu com o aparecimento dos monopólios, só que agora livre das deformações e dos desvios que ocorreram no recente passado socialista.

Além disso, por mais paradoxal que pareça, a reestruturação produtiva está a construir as bases para uma sociedade da abundância, uma vez que o desenvolvimento das forças produtivas aumentará de maneira extraordinária a produtividade do trabalho. No entanto, como todos sabemos, o sistema capitalista não tem nenhum compromisso com o progresso social e, portanto, não será capaz de satisfazer as necessidades materiais da população. Será preciso destruí-lo!

Mesmo assim, essas forças produtivas proporcionam os elementos objectivos para a sociedade da abundância de bens e serviços. No caso de essas transformações estruturais do capitalismo coincidirem com uma crise mundial do sistema, temos  as bases materiais para a construção da sociedade comunista.

Daí a urgência de nos dotarmos de um programa, duma táctica e duma  estratégia revolucionárias, no sentido de darmos corpo a uma vanguarda operária comunista,  que  – quando as condições objectivas o permitirem – se lance ao assalto do poder, destrua o aparelho de Estado burguês, instaurando em seu lugar a ditadura do proletariado, mil vezes mais democrática que a mais democrática das repúblicas burguesas.

Estamos apenas a começar, mas é precisar dar esse passo!

2003





[1] Sobre o qual o Cem Flores já publicou:
- O artigo “Oitenta Anos a Enterrar Lenine”: http://cemflores.blogspot.com.br/2016/02/oitenta-anos-enterrar-lenine-por.html;
- O artigo “Ação Comunista em Tempos de Maré Baixa”: http://cemflores.blogspot.com.br/2016/05/accao-comunista-em-tempos-de-mare-baixa.html;
- E um discurso da camarada Ana Barradas em sua homenagem: http://cemflores.blogspot.com.br/2010/09/luta-contra-o-revisionismo.html.

[2] Esse tema já foi explorado em postagens anteriores deste Blog. Destacamos, especialmente, nossos comentários sobre os textos e as cartas de Engels da segunda metade dos anos 1880: “Engels a atribui [a mudança do caráter das crises, de decenais a “crônicas”] ao aumento da produção capitalista não apenas na Inglaterra, mas nos diversos países que surgem como seus competidores na economia mundial. Se antes se poderia dizer, de maneira simplificada, que a produção industrial inglesa era suficiente para abastecer o mundo capitalista, Engels vê não só essa produção aumentando, mas a ela ser adicionada a produção alemã, inglesa e, destacadamente, a dos Estados Unidos. Isso causa o que poderíamos chamar uma superacumulação estrutural de capitais, que gera o que Engels denomina de ‘superprodução crônica’ ou ‘depressão crônica’ em diversas passagens:
estado crônico de estagnação em todos os ramos dominantes da indústria’; ‘superabundância crônica de todos os mercados para todos os negócios’; ‘crises se tornam crônicas sem, no entanto, perder nada de sua intensidade’; ‘estagnação crônica deve necessariamente tornar-se a condição normal da indústria moderna’.
” (
http://cemflores.blogspot.com.br/2008/10/engels-sobre-crise-econmica-mundial-do.html).
Os trechos selecionados dos mencionados textos e cartas de Engels foram publicados no Blog e estão disponíveis em http://cemflores.blogspot.com.br/2008/10/cartas-de-engels-e-as-crises-do.html.

[3] A fonte para os dados de investimentos é o World Investment Report 2016, da Unctad, tabelas 1, 2 e 3 do anexo estatístico, disponível em http://unctad.org/en/PublicationsLibrary/wir2016_en.pdf. Os dados citados como fluxos intra-monopólio são os fluxos totais dos chamados “investimentos estrangeiros diretos”, nos quais há fluxos de capital de uma empresa em um país para sua subsidiária em outro. A rigor, não se pode afirmar que todas essas empresas sejam monopólios porém, dada a concentração dessas operações, a absoluta maioria delas ocorre entre empresas que seriam definidas como monopólios no conceito leninista. Os dados para os países imperialistas consideram o que a Unctad chama de “países desenvolvidos”.
A fonte para os dados de comércio exterior é o World Investment Report 1995, da Unctad, capítulo IV, disponível em http://unctad.org/en/Docs/wir1995_en.pdf. Para essa publicação, os fluxos comerciais intra-firma consideram um universo de 40 mil empresas “transnacionais” e suas aproximadamente 250 mil subsidiárias no mundo todo. Para os fins deste texto, consideramos todo esse universo como monopólios no conceito leninista.

[4] Conforme estatística da Organização Mundial do Comércio, disponível em https://www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2015_e/its2015_e.pdf.

[5] Os Tesouros Nacionais de todos os países imperialistas aceleraram o endividamento público – capital fictício por excelência – depois da crise de 2008. Utilizando o banco de dados do FMI para os países componentes do G7, temos: Inglaterra (dívida bruta do governo de 89% do PIB e aumento de 111% de 2007 a 2015), Estados Unidos (105% do PIB, +64%), França (96% do PIB, +49%), Canadá (91% do PIB, +37%), Japão (248% do PIB, +35%), Itália (133% do PIB, +33%) e Alemanha, significativamente abaixo dos demais, tanto em magnitude quanto em crescimento (71% do PIB, +12%). Conforme http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2016/02/weodata/index.aspx.
A expansão de capital fictício com a criação de dinheiro pelos bancos centrais dos Estados Unidos, Área do Euro e Japão (as políticas denominadas de “quantitative easings”) atingiu US$ 12,6 trilhões, conforme http://www.yardeni.com/pub/peacockfedecbassets.pdf.

[6] A base de dados chama-se Quarterly External Debt Statistics (utilizou-se a tabela C1) e está disponível em http://datatopics.worldbank.org/debt/qeds.

[7] É importante destacar que esse montante envolve tanto “investidores domésticos” quanto estrangeiros. A rigor, apenas esta última parte poderia estar incluída nas exportações de capitais que estamos analisando. O montante total das bolsas de valores, no entanto, é importante indicador do capital fictício e também do capital financeiro, conceitos indispensáveis à nossa análise.
Os números citados estão disponíveis em http://data.worldbank.org/indicator/CM.MKT.LCAP.CD.
Estimativas alternativas apontam para valor total de US$ 69 bilhões em 2014 (http://www.marketwatch.com/story/global-stock-market-cap-has-doubled-since-qes-start-2015-02-12).

[8] Esses dados estão disponíveis em http://www.bis.org/publ/rpfx16.htm.

[9] A seguir links com informações bastante sumárias sobre cada uma dessas iniciativas:
- Programa de Cooperação Econômica da região do Mekong: https://www.adb.org/sites/default/files/publication/29387/gms-ecp-overview-2015.pdf.
- Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura: http://euweb.aiib.org/html/aboutus/introduction/history/?show=0.

[10] Definições sumárias e estimativas sobre suas dimensões podem ser encontradas em http://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2013/06/basics.htm e http://www.economist.com/blogs/economist-explains/2016/02/economist-explains-0.

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