Nesse mesmo trabalho, a partir da tese geral de que todos os eventos econômicos, políticos e sociais no país têm como determinante em última instância a crise do capital no Brasil, afirmamos a seguinte tese específica:
6) No ambiente de crise se agrava a contradição entre, por um lado, a ideologia jurídica burguesa (respeito às leis, igualdade, justiça etc.) e os seus “operadores” no aparelho repressivo de Estado (Poder Judiciário do juizado de 1ª instância ao STF, Ministério Público e Polícia Federal) e, por outro, a prática cotidiana dos negócios da burguesia, no Brasil e no mundo: corrupção, fraude, suborno, carteis etc. A operação Lava Jato, inicialmente fato contingente na conjuntura política, passa a definir programa próprio, detalhado e sequencial, de atingir a atual representação política da burguesia e substituí-la por uma nova, “ficha limpa” (sic!), buscando legitimar a dominação capitalista;
Com o objetivo de contribuir na análise dos fatos recentes da conjuntura brasileira e na compreensão do que é a ideologia jurídica burguesa, reproduzimos abaixo o texto A Ilusão da jurisprudência, de Marcio Bilharinho Naves, recém publicado no site LavraPalavra.
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A Ilusão da jurisprudência
Marcio B. Naves
“...pretender dar uma definição da propriedade
como uma relação independente,
uma categoria à parte, uma idéia abstrata
e universal —isso não pode ser
mais que uma ilusão
da metafísica ou da jurisprudência”
(Marx, 1989: 143)
Resumo: Quando a luta popular é dominada pelas representações oriundas do campo da ideologia jurídica, ela apenas reproduz as formas de sua própria subordinação ao processo do capital. O “esquecimento” da tese de Marx e Engels sobre a incompatibilidade absoluta entre o comunismo e o direito conduz a esquerda aos velhos caminhos do “socialismo jurídico”.
Há um fio de continuidade entre a luta que Marx e Engels travaram contra as diversas formas de socialismo jurídico e o atual domínio das figuras do direito no movimento popular. A presença da ideologia jurídica no meio operário e socialista é o índice mais expressivo dos limites e dificuldades em se romper com as representações e práticas burguesas da política. Seria talvez suficiente apenas lembrar o culto que a esquerda devota à categoria de cidadania, objeto de tal reverência e respeito sagrado que tudo parece girar em torno de sua aquisição e extensão, a ponto de o socialismo se confundir com a Declaração universal dos direitos do homem e do cidadão!
Não é então surpreendente que a luta social se reduza, em última instância, a uma simples querela jurídica: a democracia como forma e a distribuição da riqueza como o seu substrato material. É interessante observar a enorme regressão teórica e política que isso representa. Em um curto espaço de tempo somos arrastados de volta para questões que o próprio Marx enfrentou e ultrapassou, e que agora se apresentam como as mais legítimas expressões da contemporaneidade!
Marx, Engels e a “ilusão da jurisprudência”
Em um período crucial de sua atividade política, às vésperas de redigirem o Manifesto comunista, Marx e Engels encetaram contra as representações então dominantes no meio operário e popular uma luta ideológica decisiva para que fosse possível a compreensão do processo efetivo de luta social e se abrisse a perspectiva real do comunismo. Trata-se do combate contra o antigo programa operário da Liga dos Justos, inteiramente dominado pela ideologia jurídica e por uma concepção humanista de mundo.
Este programa sustentava que o objetivo dos trabalhadores era a realização dos princípios enunciados na Declaração dos direitos do homem e do cidadão, ou seja, a realização do programa político burguês, disso resultando o lema da Liga: “todos os homens são irmãos”, que deixa transparecer a influência, dentre outras, do cristianismo. Marx e Engels substituem todas essas fantasias caridosas e moralistas, que encerram o movimento operário no horizonte ideológico burguês e pequeno-burguês, por uma análise do modo de produção capitalista da qual resulta a possibilidade de se fundar uma estratégia revolucionária para a tomada do poder político pelo proletariado, com a conseqüente supressão dos fundamentos materiais da sociedade burguesa[1].
Assim também, Engels e Kautsky, em seu combate contra a influência no meio operário de um dos mais eminentes representantes do “socialismo jurídico”,[2] Anton Menger, demonstram que, se os trabalhadores fundam a sua estratégia sob a base do direito e tomam como suas as reivindicações jurídicas burguesas da liberdade e da igualdade, apenas reproduzem as formas de dominação da burguesia sobre eles próprios. “A classe trabalhadora –despojada da propriedade dos meios de produção, no curso da transformação do modo de produção feudal em modo de produção capitalista, e continuamente reproduzida pelo mecanismo deste último na situação hereditária de privação de propriedade – não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia. Só pode conhecer plenamente essa mesma condição de vida se enxergar a realidade das coisas, sem as coloridas lentes jurídicas. A concepção materialista da história de Marx ajuda a classe trabalhadora a compreender essa condição de vida, demonstrando que todas as representações dos homens – jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas, etc.– derivam, em última instância, das condições de vida do próprio homem e do modo de produzir e trocar os produtos” (Engels e Kautsky, 1995: 27).
Assim, não seria exagero afirmar que a crítica do direito em Marx e Engels, o seu rompimento com a ideologia jurídica burguesa, constituiu-se em uma das condições necessárias para que eles pudessem ter elaborado uma teoria científica da sociedade burguesa, e pudessem ter pensado as condições de sua ultrapassagem revolucionária.
Essa análise vai justamente demonstrar o vínculo essencial entre a forma jurídica e a forma da mercadoria, revelando a natureza burguesa de todo o direito e a falácia de todo projeto de emancipação popular que tenha como base esse mesmo direito.
Direito e troca mercantil
“As mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar” (Marx, 1983: 79). Necessitam que os seus guardiões, os possuidores de mercadorias as levem. Essa passagem de O capital revela o nexo íntimo que prende a necessidade da circulação das mercadorias e a emergência das categorias do direito. Para que a troca mercantil se efetue é necessário que os possuidores de mercadorias se reconheçam reciprocamente enquanto proprietários privados “cuja vontade reside nessas coisas” (nas suas mercadorias) (Marx, 1983: 79); é preciso, portanto, que cada um deles reconheça o estatuto de sujeito de direito do outro. Do mesmo modo, o ato de troca só se realiza por meio de um contrato que permite que as vontades dos proprietários se exprimam em um acordo que “harmoniza” os distintos e contraditórios interesses das partes.
É assim que a compra e venda da força de trabalho pode aparecer como um simples negócio jurídico, no qual dois titulares de direitos, iguais e livres, no pleno gozo de suas capacidades jurídicas, celebram um acordo que exprime, de forma perfeita e acabada, as suas vontades de proprietários de mercadorias. De fato, como explica Marx (1983: 79), para que a força de trabalho possa ser oferecida como mercadoria é necessário que o seu possuidor possa dela dispor livremente, como seu proprietário. A relação que ele estabelece com o possuidor do dinheiro é, assim, uma relação entre proprietários de mercadorias juridicamente iguais. No mesmo sentido Engels e Kautsky (1995: 25) revelam que “… uma vez que a forma fundamental das relações entre livres produtores de mercadorias, isto é, a concorrência, é niveladora ao extremo, a igualdade jurídica tornou-se o principal brado de guerra da burguesia”. Todo o mistério do direito e a liturgia sagrada que consagra os direitos do homem aparecem aqui em sua crua realidade: a liberdade e a igualdade são determinações do valor de troca, necessárias para que o homem possa ser “comercializado”, isto é, para que a sua força de trabalho possa circular como objeto de troca que ele, como seu proprietário, aliena por tempo certo, concedendo ao comprador o direito de consumir essa mesma força de trabalho no processo de produção. Como diz Marx: “A esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limites se movimentam compra e venda de força de trabalho, era de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo a força de trabalho, são determinados apenas por sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. o contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de si mesmo” (Marx, 1983: 145). Ora, esse movimento, ao mesmo tempo em que permite que uma das condições essenciais para a constituição da relação de capital se cumpra – a compra da força de trabalho pelo possuidor do dinheiro–, também impede que se veja que essa relação é uma relação de exploração dessa força de trabalho, mediante a qual o capitalista extrai do operário trabalho não pago. A relação de capital pode aparecer, assim, como o momento culminante da realização dos direitos, da liberdade e da igualdade do homem, pois a expressão máxima da liberdade e da igualdade é o ato no qual o homem se aliena a si mesmo por tempo determinado, realizando completamente a liberdade de disposição de si mesmo enquanto objeto em uma relação de absoluta igualdade com o comprador.
É a isso que se refere Bernard Edelman (1973: 89) quando diz que “(…) o Direito, fixando a circulação não faz mais do que promulgar os decretos dos direitos do homem e do cidadão; (…) ele escreve sobre a face do valor de troca os sinais da propriedade, da liberdade e da igualdade, mas (…) estes sinais (…) se lêem como exploração, escravatura, desigualdade, egoísmo sagrado”.
Já podemos perceber o papel decisivo que o direito joga na luta de classe burguesa. O nascimento da forma jurídica moderna, o reconhecimento de um estatuto universal de sujeito de direito que pertenceria “naturalmente” a todos os homens, é uma forma de subjugamento dos trabalhadores que aparece como o seu contrário: como a realização da liberdade e da igualdade dos homens.
Direito e luta de classes
A partir da determinação do direito pelo processo do valor de troca, torna-se possível apreender a instância jurídica como forma política par excellence da sociedade burguesa. Quando a burguesia legaliza uma certa prática operária, por exemplo, a greve, ao mesmo tempo ela criminaliza todas as formas de luta que permanecem fora do direito, isto é, fora do campo da legalidade por ela estabelecido, o que equivale a dizer, fora do campo de luta que lhe é mais vantajoso. Todo esse processo que Bernard Edelman (1978) chamou de “legalização da classe operária” consiste fundamentalmente em uma negação da luta de classe operária por meio de um deslocamento do espaço de existência dessa classe para dentro do campo jurídico. A partir daí está interditada (legalmente) aos trabalhadores toda iniciativa dentro da fábrica que ameace o processo de valorização do capital: a política, isto é, a luta de classe operária, deve deter-se na frente da fábrica. A fábrica não é o espaço da política, ela é o espaço dos negócios privados, isto é, do direito privado. Expulsa da fábrica, a política encontra o seu lugar próprio: o Estado, com o seu parlamento e o seu sistema eleitoral. Assim, a classe operária é “dissolvida” e seus membros podem ressurgir, em uma espantosa metamorfose, como cidadãos cuja vontade política circula no Estado assim como, analogamente, circulam as mercadorias na sociedade civil.
Essa é a razão pela qual, do ponto de vista das classes dominadas, o respeito à legalidade, o culto aos direitos, à Constituição, significa reproduzir as condições da valorização do valor e a renuncia à luta contra a dominação burguesa.
Por isso mesmo não deve causar surpresa que Marx possa ter demonstrado a necessidade de se romper com a legalidade burguesa como condição elementar da luta dos trabalhadores.
Na “Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas” (Marx e Engels, 1977), Marx e Engels sustentam que a luta dos trabalhadores precisa ser travada tanto no terreno da legalidade burguesa, como no campo da ilegalidade. A ação ilegal da classe operária deve mesmo ser o aspecto dominante da luta, pois é ela que vai garantir a independência organizativa e política dos trabalhadores. O enfrentamento de classe deve levar à instauração de um duplo poder, o que significa a criação de órgãos de poder proletários não apenas não previstos constitucionalmente, mas cuja criação configura crime previsto no código penal e nas demais leis repressivas do Estado burguês. Marx e Engels defendem ainda a necessidade de a classe operária armar-se e utilizar a violência contra a classe dominante para assegurar as condições mínimas de possibilidade de triunfo revolucionário.
Ora, o que todas essas análises nos revelam é a absoluta incompatibilidade entre a luta popular e a ideologia jurídica. Percorrer os (velhos) caminhos do “socialismo jurídico” e aceitar as representações do socialismo como extensão progressiva dos direitos significa encerrar o movimento popular em um círculo de ferro do qual ele não sairá jamais: prisioneiro das ilusões da jurisprudência, os trabalhadores reforçarão as bases de sua própria sujeição ao capital, acarretando o abandono de uma real superação do capitalismo.
Socialismo e direito
Não obstante todos os votos piedosos em favor dessa representação jurídica do socialismo, em Marx não há qualquer defesa da manutenção da forma jurídica na transição para o comunismo. Ao contrário, é conhecida a passagem da “Crítica ao programa de Gotha” na qual Marx demonstra que a persistência do direito burguês no período de transição significa um limite e um entrave à transformação comunista da sociedade capitalista, a qual deverá levar à ultrapassagem dos “estreitos limites do direito burguês” (Marx, 1985: 15).
Se o direito está relacionado, como vimos, ao processo do valor de troca, e se o socialismo deve acarretar a gradativa extinção das formas mercantis derivadas das relações de produção capitalistas que ainda persistem no período de transição, o que deveria ocorrer é justamente a extinção da forma jurídica no curso desse processo, e não o fortalecimento dos direitos e da ideologia jurídica.
Seria surpreendente que tenha sido justamente o stalinismo o responsável pela recuperação dos direitos na União Soviética a partir de 1936? A defesa e ilustração que o jurista stalinista A. Vychinski (1938) faz da legalidade e do direito nada fica a dever ao mais conservador de nossos juristas burgueses.[3] Como explicar esse aparente paradoxo? Na medida em que a União Soviética se afasta de uma perspectiva de transição para o socialismo e envereda por uma via capitalista (de Estado), volta a ser necessário não apenas restaurar o tecido jurídico, com a sua complexa rede de códigos, mas também reconstruir as formas ideológicas do direito[4], em uma prova, nesse caso extrema, do vínculo necessário entre o direito e o capital.
Ao sustentar um programa de reivindicações jurídicas, de defesa e ilustração da cidadania, ao fazer a apologia dos direitos, a esquerda não estaria trazendo de volta o antigo programa da Liga dos Justos? E assim tudo o que ele esconde e realiza: as formas da circulação e da exploração capitalistas? Se o “socialismo” só nos pode levar a isso, não seria o caso de dizer, com Bernard Edelman (1978b: 242), que belo funeral!?
Bibliografia
EDELMAN, Bernard. (1973) Le droit saisi par la photographie. (Éléments pour une théorie marxiste du droit), Paris, Librairie François Maspero.
EDELMAN, Bernard.(1978a) La légalisation de la classe ouvrière, t. 1: L’entreprise, Paris, Christian Bourgois Editeur.
EDELMAN, Bernard. (1978b) “Diritto come forma borghese della politica”, in Louis Althusser, Louis et al., Discutere lo Stato. Posizioni a confronto su una tesi di Louis Althusser, Bari, De Donato Editore.
ENGELS, Friedrich e Karl Kautsky .(1995) O socialismo jurídico, 2ª ed., São Paulo, Editora Ensaio.
MARX, Karl e Friedrich Engels. (1977) “Ansprache der Zentralbehörde des Bundes der Kommunisten vom März 1850”, in Karl Marx e Friedrich Engels, Gesamtausgabe, I/10, Berlim, Dietz Verlag.
MARX, Karl. (1983) O capital, v. 1, t. 1, São Paulo, Abril Cultural.
MARX, Karl. (1985) “Kritik der Gothaer Programms”, in Karl Marx e
Friedrich Engels, Gesamtausgabe, I/25, Berlim, Dietz Verlag.
MARX, Karl. (1989) A miséria da filosofia, São Paulo, Global.
Vychinski, Andrei. (1938) “Osnovnye zadatchi nauki sovetskogo sotsialistitcheskogo prava”, in Sotsialititcheskaia Zakonnost’, nº 8.
Notas
[1] Cf. Michael Löwy, La teoría de la revolución en el jovem Marx, México, Siglo Veintiuno Editores, 1978, Georges Labica, Le statut marxiste de la philosophie, Bruxelas, Editions Complexe, 1976 e Márcio Bilharinho Naves, Marx. Ciência e revolução, São Paulo/Campinas, Editora Moderna/Editora da Unicamp.
[2] Sobre o “socialismo jurídico”, pode-se ver, notadamente, os Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, nº 3/4, “Il ‘socialismo giuridico’. Ipotesi e letture”, 1974-1975.
[3] Uma análise desse processo pode ser vista em Márcio Bilharinho Naves, Marxismo e direito. Um estudo sobre Pachukanis, São Paulo, Boitempo Editorial.
[4] Não será certamente por acaso que durante a revolução cultural na China tenha sido dirigida uma campanha contra o direito burguês. Cf., a respeito, os artigos de Chang Chun-chiao, “On exercising all-round dictatorship over the bourgeoisie”, in Raymond Lotta (org.), And Mao makes 5. Mao tsetung’s last great battle, Chicago, Banner Press, 1978, e Silvia Calamandrei, “Note sulla limitazione del diritto borghese e la dittatura del proletariato”, in Vento dell’Est, nº 38, 1975.
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