Reproduzimos abaixo o artigo O Fim da Obediência, da camarada Ana Barradas, recém publicado no site Bandeira Vermelha (acesse aqui). Trata-se de artigo que, como introduz a autora, expõe os "acontecimentos que na China marcaram o espantoso progresso das mulheres promovido pela revolução, que as fez transpor em poucos anos um atraso de séculos." Esse artigo foi publicado originalmente no jornal comunista português Política Operária, no início de 1994.
Essa publicação se soma a outras que já postamos e que também tratam da luta da mulher e da revolução. Em março de 2014 publicamos o texto A Libertação da Mulher é uma Necessidade da Revolução, Garantia da sua Continuidade, Condição do seu Triunfo, do dirigente comunista moçambicano Samora Machel.
Em março de 2017 publicamos dois artigos relacionados ao tema: A Família na União Soviética. Crise e Reconstituição 1917/1944, também de Ana Barradas e o texto A Contribuição da Mulher na Construção do Socialismo, de Vladimir Ilich Lenin.
Publicamos também, em maio último, outro texto da camarada Ana Barradas: Falta um Programa Para as Mulheres.
É tarefa imprescindível para a revolução no Brasil e no mundo a incorporação imediata das verdadeiras bandeiras de luta das mulheres. Sem isso o caminho teórico e prático para a retomada do nosso instrumento de combate e da Revolução estará travado. É essa nossa intenção com a apresentação desses materiais para estudo e debate entre os camaradas e leitores do blog Cem Flores.
* * *
Ana Barradas
Vem a
propósito de centenário de Mao Tsé-tung recordar os acontecimentos que na China
marcaram o espantoso progresso das mulheres promovido pela revolução, que as
fez transpor em poucos anos um atraso de séculos. Foi esse
prodígio que se repercutiu ao longo de décadas no resto do mundo, rasgando
novos horizontes ao movimento feminista e restituindo ao campo revolucionário
uma causa que os revisionistas tinham condenado ao esquecimento.
Ao assistir à revolta, Mao teve uma percepção algo surpreendente:
nesse movimento poderoso residia a possibilidade de os revolucionários
derrotados se reorganizarem. A história deu-lhe razão, porque foi apoiado na
ampla massa de camponeses sem terra que o Partido Comunista conseguiu, vinte
anos mais tarde, expulsar os japoneses, derrotar a reacção interna e tomar o
poder.
Importa então saber o
que faziam as mulheres nessas aldeias remotas onde, numa primeira fase,
despontava o embrião da nova China. Num gesto altamente simbólico, entravam no
templo dos antepassados, que lhes estava vedado, sentavam-se nos cadeirões dos
anciãos e comiam e bebiam do banquete ritual, a que nunca tinham assistido.
Violavam assim as quatro autoridades a que sempre se tinham sujeitado:
política, clânica, religiosa e marital. Era o sacrilégio máximo, não era
possível ser-se mais irreverente. Estavam maduras para a revolução.
Por isso foi-lhes fácil aceitarem as propostas dos comunistas de se
organizarem em associações rurais, juntarem-se à guerrilha comunista e
participarem na resistência contra os japoneses. Elas não tinham nada a perder.
De facto, a situação anterior era
tenebrosa. Todas as mulheres estavam sujeitas a códigos que lhes reservavam o
lugar mais desprezível e degradante na ordem social, económica e religiosa.
Qualquer que fosse a sua idade ou condição, deviam submeter-se às três
obediências: ao pai, ao marido e ao filho. Não tinham nenhum direito de
propriedade, de herança ou de salário, como não tinham nenhum direito sobre os
filhos ou o marido. Os casamentos eram arranjados e o concubinato uma prática
corrente. Deviam executar os trabalhos mais servis no campo e em casa e eram
alvo de maus tratos de todos. Para se garantir que nunca tentariam a fuga,
enfaixavam-se-lhes os pés desde a nascença, o que os deformava, provocando-lhes
dores lancinantes e quase as impedindo de andar.
Em 1949, quando os maoístas proclamaram
a República Popular, a situação apresentava-se calamitosa: 500 milhões de
chineses eram pobres; oitenta por cento da população analfabeta; não existia
nenhuma indústria; eram recolhidos anualmente nas ruas de Xangai 25.000 corpos
de pessoas mortas de inanição.
Apesar de tudo, a causa da emancipação
da mulher seguia o seu curso. Num congresso
feminino realizado na zona libertada poucos meses antes da entrada em Pequim,
tinham sido definidos os elementos essenciais da lei do casamento que viria a
ser aprovada em Maio de 1950. Esta instituía princípios nunca antes observados
na China: a escolha livre do companheiro, a garantia da monogamia, o direito ao divórcio em
condições de igualdade, a proibição de concubinagem e de noivado de crianças e
medidas de protecção especial às mulheres e crianças.
Após a proclamação da República Popular,
seguiu-se uma vaga de divórcios, rapidamente concedidos. O estado chamou a si
os encargos resultantes do desmembramento de famílias em que a sobrevivência
económica ficava ameaçada. Em simultâneo, verificou-se o ingresso em massa das mulheres
nas fábricas, nas escolas e em
cooperativas de produção, a organização de pequenas oficinas artesanais e de
fábricas rudimentares, a partir de materiais locais ou da reciclagem de outros.
Pela primeira vez, a China passou a contar com médicas, engenheiras,
professoras, escritoras, etc.
Passados os primeiros anos de
transformações revolucionárias, a condição da mulher evoluiu no sentido da
subjugação. Apesar dos sobressaltos do movimento das Comunas Populares e da
Revolução Cultural, a tendência foi no sentido da crescente discriminação
salarial, da obediência ao homem e da sobrecarga familiar. Na China actual,
ressurgem manifestações revoltantes do machismo e de escravização das mulheres.
EXEMPLOS DE
LUTA INSPIRAM FEMINISMO
Nos anos 60, viveu-se em todo o mundo uma vaga de lutas
revolucionárias: na China, a Revolução Cultural; no Vietname, a resistência
heróica contra os americanos; em Cuba, o derrube da ditadura e a instauração de
um regime anticapitalista; em Africa, as lutas de libertação nacional;
e 11a América Latina as guerrilhas
populares.
O papel da mulher nessas lutas assume um
valor novo e inspira os movimentos feministas na América e Europa. Assim, Maio
de 68 foi, nesse aspecto como noutros, uma fusão de ideias maoístas,
libertárias, marxistas e anarquistas, todas orientadas contra a ideologia
dominante e a influência revisionista no campo revolucionário. O modelo da
mulher esposa, mãe, patriota e produtora, tão caro aos revisionistas, é
substituído por outro, em grande parte tributário do modelo maoísta: o da mulher em si, como
individualidade própria, em luta contra o sexismo e a servidão da maternidade e
da casa (pelo direito ao aborto e à contracepção, contra a rotina doméstica,
pela satisfação das suas necessidades como pessoa).
Essas ideias surgem muito esbatidas em
Portugal, mas sempre vão chegando, pelo contacto com a emigração (políticos e
desertores), pelo contrabando de literatura revolucionária, pelas acesas
discussões, nos meios mais progressistas, sobre família, igualdade, machismo,
etc.
No entanto, como não transpunham o mero plano ideal e não
correspondiam a nenhuma prática social, só deram origem a um movimento utópico
que nem por ser extremamente localizado deixou de ser menos curioso: os
maoístas e alguns sectores católicos fundaram as suas comunas e comunidades, em
que procuravam outro modo de viver, sobretudo no plano político e económico,
partilhando tudo em comum, ideias e propriedade, mas também ensaiando novas
relações entre homens e mulheres, novos conceitos sobre família e um novo olhar
sobre a criança.
FEMINISMO
DEMOCRÁTICO
Depois do 25 Abril, surgiram como
cogumelos associações de mulheres, cada uma delas mais ou menos conotada com o partido que lhe deu origem. A
UMAR (União das Mulheres Antifascistas e Revolucionárias) foi a mais notória
organização feminina ao estilo maoísta. Numa primeira fase, erigiu como palavra
de ordem principal “A trabalho igual, salário igual”, quando, após o 25 de Novembro, ainda
subsistiam lutas das camponesas, das conserveiras, das trabalhadoras têxteis,
etc.
Depois, propagandeou o direito ao aborto, numa
campanha cujo marco principal foi o julgamento de Conceição Massano,
ameaçada com pena de dois anos de prisão por “crime” de aborto e absolvida
graças ao movimento de simpatia que o seu processo motivou.
À medida que declinam as lutas populares
também a UMAR se vai transformando numa organização hierarquizada, desligada
das bases e das reivindicações sociais específicas da mulher. As dirigentes
eram a versão feminina dos chefes do PC(R), o partido que dera origem ao
movimento. A preferência passou a ser dada às alianças com mulheres
intelectuais e pequeno-burguesas, em torno de objectivos
democráticos
e gerais, subordinados às conjunturas e integrados nas campanhas em que se
envolvia o partido.
O reconhecimento da UMAR pelas
estruturas oficiais do Estado conto organização credível e responsável marcou o seu fim. Hoje a obscura UMAR,
que escolheu chamar-se Movimento para a Emancipação Social das Mulheres
Portuguesas, para corrigir o desvio ideológico” do passado, é uma estrutura
feminina partidária sem nenhuma veleidade revolucionária.
De resto, a situação actual é
desoladora, também noutros sectores. Numa sociedade que, sob uma aparente capa
de modernidade, reforça os seus traços machistas tradicionais, reina o marasmo, a apatia e o
defensismo e é raro alguma mulher dispor-se a assumir-se como feminista.
Pressente-se que só novas vagas de
agitação social abalarão este estado de coisas. Tudo indica que o feminismo revolucionário
só tem força para se desenvolver se em simultâneo estiver em curso algum
processo social suficientemente explosivo para contagiar para a acção política
largos sectores femininos, por norma entregues ou à esfera doméstica ou ao
embrutecimento provocado pela dupla jornada de trabalho.
Entretanto, uma proposta que se
nos afigura possível é tentar reconstituir a história das trabalhadoras
portuguesas, que está por fazer. Talvez esse trabalho interesse um núcleo de
mulheres que, ainda que restrito, poderá encontrar nele apoio para reflectir
sobre a situação e romper a imobilidade.
[i]
Publicado
em Política Operária nº 43, Jan-Fev 1994.
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