domingo, 5 de abril de 2009

Quem são os «Amigos do Povo»?


V.I. Lenin
Apêndice III[1]

Após o artigo "Praticar a Crítica Teórica", publicado abaixo, o coletivo do blog considerou importante publicar o Apêndice III da obra de Lênin "Quem são os 'Amigos do Povo' e Como Lutam Contra os Socialdemocratas?", traduzido de duas versões em espanhol ["Obras Escogidas" en doce tomos, Tomo I, Editorial Progreso, Moscú, 1975 - "Escritos Económicos (1893-1899)", 2, Siglo Veinte Uno de España, 1974]. Nele veremos que a "tarefa de combater a ideologia burguesa" onde quer ou como quer que ela se apresente não é tarefa nova. Colocar a descoberto, ontem e hoje, o que está muitas vezes recheado de palavras "socialistas", "revolucionárias" encobrindo o que não passa de puro democratismo burguês. Trata-se de uma necessidade imprescindível da afirmação da posição marxista, da posição revolucionária.

Ao falar de uma compreensão estreita do marxismo, refiro-me aos próprios marxistas. Não se pode deixar de observar nesse propósito que o marxismo é submetido a mais escandalosa redução e tergiversação quando nossos liberais e radicais tomam a tarefa de expô-lo nas páginas da imprensa legal. Que exposição é esta! Pensa-se tão somente de que maneira há que mutilar esta doutrina revolucionária para fazê-la caber no leito de Procusto[2] da censura russa! E nossos publicistas fazem com toda tranqüilidade semelhante operação: em sua exposição o marxismo se reduz à doutrina de como, debaixo do regime capitalista, a pequena propriedade realiza seu desenvolvimento dialético baseada no trabalho do proprietário; como se converte em sua negação e depois se socializa. E encaixam com ar de seriedade neste "esquema" todo o conteúdo do marxismo, deixando de lado todas as particularidades de seu método sociológico, omitindo a doutrina da luta de classes, omitindo a finalidade direta da investigação: descobrir todas as formas de antagonismo e da exploração para ajudar o proletariado a desfazer-se delas. Não é estranho que resulte em algo há tal ponto sombrio e estreito, que nossos radicais já comecem a compadecer-se dos pobres marxistas russos. Não é para menos! O absolutismo russo e a reação russa não seriam absolutismo e reação se, sob sua existência, se pudesse expor por inteiro, com exatidão e de maneira plena, o marxismo, levando até as últimas conseqüências suas deduções! E se nossos liberais e radicais conhecessem como é devidamente o marxismo (ainda que somente fosse pela literatura alemã), lhes daria vergonha mutilá-lo como o fazem nas páginas de uma imprensa submetida à censura. Se não se pode expor uma teoria, calem-se ou façam a reserva de que não estão a expondo na íntegra, nem muito menos, omitindo o mais essencial, porém, por que então, falam de estreiteza, apresentando apenas somente alguns fragmentos?
Assim só se pode chegar a casos tão curiosos, possíveis somente na Rússia, de tomar como marxistas pessoas que não tem nem idéia da luta de classes, do antagonismo necessário inerente à sociedade capitalista e do desenvolvimento desse antagonismo, pessoas que não tem idéia do papel revolucionário do proletariado; inclusive pessoas que apresentam abertamente projetos burgueses, contanto que neles apareçam as palavras "economia monetária", sua "necessidade" e outras expressões pelo estilo que, para reconhecê-las como genuinamente marxistas, requerem todo o profundo engenho do senhor Mijailovski.
Porém Marx via todo o valor de sua teoria em que "por sua essência mesma é uma teoria crítica[3]e revolucionária"[4]. E esta última qualidade é, de fato e sem dúvida nenhuma, inerente ao marxismo por inteiro, porque esta teoria se propõe diretamente como tarefa descobrir todas as formas do antagonismo e da exploração na sociedade moderna, seguir sua evolução, demonstrar seu caráter transitório, a inevitabilidade de sua conversão em outra forma distinta e servir assim ao proletariado, para que este termine, o antes possível e, com a maior facilidade possível, toda exploração. A insuperável e sugestiva força que atrai até esta teoria aos socialistas de todos os países consiste precisamente em que une um rígido e supremo cientificismo (sendo como é a última palavra da ciência social) com o espírito revolucionário, e os une, não por casualidade, não só porque o fundador da doutrina unia em si pessoalmente as qualidades do científico e do revolucionário, sim que os une na teoria mesma, com os nexos internos e indissolúveis. De fato, como tarefa da teoria, como finalidade da ciência, se apresenta diretamente aqui o ajudar a classe dos oprimidos em sua luta econômica real.
"Nós não dizemos ao mundo: 'deixa de lutar, toda tua luta não vale nada' Nós lhe daremos a verdadeira consigna da luta"[5]
Por conseguinte, a tarefa direta da ciência, segundo Marx, consiste em dar a verdadeira consigna da luta, quer dizer, saber apresentar objetivamente esta luta como produto de um determinado sistema de relações de produção, saber compreender a necessidade desta luta, seu conteúdo, o curso e as condições de seu desenvolvimento. Não se pode dar a "consigna da luta" sem estudar em todos os seus detalhes cada uma das formas desta luta, sem seguir cada passo da mesma, em seu trânsito de uma forma a outra, para saber em cada momento concreto determinar a situação, sem perder de vista o caráter geral da luta, seu objetivo geral: a destruição completa e definitiva de toda exploração e de toda opressão.
Tentem comparar com a teoria "crítica e revolucionária" de Marx este sombrio absurdo que expunha em sua "crítica" a qual combatia "nosso conhecido" N. K. Mijailovski, e se maravilharão de como pode haver realmente homens que se consideram "ideólogos da classe trabalhadora" e que se contentam, nossos publicistas... com a "moeda desgastada" em que convertem a teoria de Marx, apagando dela tudo o que tem de vital.
Tentem comparar com a teoria "crítica e revolucionária" nossa literatura populista, que também tem sua origem no desejo de desempenhar o papel de ideóloga do trabalhador, uma literatura consagrada à história e ao estágio atual de nosso regime econômico em geral e dos camponeses em particular, e se assombrarão de que tenha havido socialistas que se conformassem com semelhante teoria, limitada a estudar e descrever as calamidades e a pregar moral a propósito destas calamidades. O regime de servidão é apresentado, não como uma forma determinada da organização econômica, que engendrou uma determinada exploração, determinadas classes antagônicas, determinadas instituições políticas, jurídicas, etc., e sim como abusos dos senhores da terra e como uma injustiça em relação aos camponeses. A reforma camponesa é apresentada não como o choque de determinadas formas econômicas e determinadas classes econômicas, e sim como uma medida das autoridades, "que escolheram" por erro "um caminho equivocado", apesar das melhores intenções. A Rússia posterior a abolição da servidão é apresentada como um desvio do verdadeiro caminho, acompanhada de calamidades para o trabalhador, e não como um determinado sistema concreto de relações antagônicas de produção, que tem um desenvolvimento determinado.
Agora, além disso, o descrédito desta teoria é indubitável, e quanto antes compreendam os socialistas russos que não pode haver, dado o nível atual de conhecimento, uma teoria revolucionária fora do marxismo, quanto antes dirijam todas as suas forças à aplicação desta teoria a Rússia, no sentido teórico e no sentido prático, tanto mais precisos e mais rápido será o êxito do trabalho revolucionário.
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Para ilustrar de uma maneira palpável a corrupção que introduzem os senhores "amigos do povo" no "pobre pensamento russo" contemporâneo com seu chamado a intelectualidade a exercer sua influência cultural sobre "o povo" para "cria" uma indústria bem organizada e justa, etc., transcreveremos a opinião de pessoas que sustentam uma maneira de pensar radicalmente distinta da nossa: os partidários do Naródnoie Pravo ["O Direito do Povo"], esses sucessores diretos e imediatos dos afiliados do Naródnoia Volia ["A Vontade do Povo"]. Veja-se o folheto "Um problema palpitante", 1894, editorial do "Naródnoie Pravo"[6].
Depois de dar uma magnífica réplica a essa classe de populistas que dizem "que de nenhuma maneira, inclusive sob a condição de uma ampla liberdade, deve a Rússia abandonar sua organização econômica, que assegura [!] ao trabalhador uma situação de independência na produção" que dizem: "não necessitamos reformas políticas, sim reformas econômicas sistemáticas, aplicadas de uma maneira planificada", os partidários do Naródnoie Pravo continuam:
"Não somos defensores da burguesia e menos ainda admiradores de seus ideais, mas se o destino fatal deu ao povo a escolher: 'reformas econômicas planificadas' sob a proteção dos ziemskie nachálnik[7], que as resguardem ciosamente dos ataques da burguesia, ou esta última sobre a base da liberdade política, ou seja, sob condições que assegurem ao povo a defesa organizada de seus interesses, consideramos que o povo, ao escolher a última, sairia simplesmente ganhando. Em nosso país não existe agora 'reformas políticas' que ameacem arrebatar ao povo a pseudo-independência de sua organização econômica, e há o que por todos e em todas as partes chegou a ser considerada política burguesa que se expressa na mais escandalosa exploração do trabalho popular. Agora em nosso país não existe liberdade, nem ampla e nem reduzida, mas há a proteção dos interesses da casta em que tiveram deixado de sonhar os grandes proprietários de terras e capitalistas dos países constitucionais. Agora em nosso país não há 'parlamentarismo burguês', à sociedade não se permite sequer acercar-se das funções da administração e existem os senhores Naidienov, Morósov, Kasi e Bielov[8], que exigem em seus discursos que se levante uma muralha da china para proteger os seus interesses, ao lado dos representantes 'de nossa nobreza fiel' que chegarm até a exigir um crédito de cem rublos por desiatina[9]. Se lhes convidam a participar em comissões, se lhes escutam com respeito, suas vozes têm uma importância decisiva nas questões mais transcendentais da vida econômica do país. E ao mesmo tempo, quem e onde intervém em defesa do povo? Eles, os ziemskie nachálniki?Não se projetam as companhias de operários agrícolas para enquadrar o povo nelas? Não se tem declarado agora com uma franqueza superficila no cinismo em que deram ao povo os lotes de terra unicamente para que paguem os impostos e cumpram suas obrigações públicas, como expressou em sua circular o governador de Vologda? Este não tem feito mais que formular e dizer em voz alta o que com sua política realiza fatalmente a autocracia, ou, dito mais exatamente, o absolutismo burocrático."
Por confusas que sejam, todavia as idéias dos partidários de Naródnoie Pravo sobre o "povo" cujos interesses querem defender, sobre a "sociedade" na qual continuam vendo o órgão merecedor de confiança para a proteção dos interesses do trabalho, em todo caso há que reconhecer que a formação do partido Naródnoie Pravo é um passo a frente, um passo no sentido de abandonar de maneira definitiva as ilusões e os sonhos em "outros caminhos para a pátria", no sentido de reconhecer sem temor os caminhos realmente existentes e, sobre sua base, buscar elementos para a luta revolucionária. Aqui se descobre com clareza a tendência à formação de um partido democrático. Falo somente da "tendência", porque os partidários de "Naródnoie Pravo", por desgraça, não aplicam conseqüentemente seu ponto de vista fundamental. Falam todavia da unificação e aliança com os socialistas, sem querer compreender que arrastar os operários ao simples radicalismo político significa somente separar os intelectuais operários da massa operária, significa condenar à impotência o movimento operário, porque este pode ser forte unicamente sobre a base da reivindicação plena e completa dos interesses da classe operária, sobre a base da luta econômica contra o capital, luta que se funde de modo indissolúvel com a luta política contra os lacaios do capital. Não querem compreender que a "unificação" de todos os elementos revolucionários se consegue muito melhor mediante a organização independente dos representantes dos diferentes interesses[10] e a ação conjunta de um e de outro partido em determinados casos. Todavia chamam a seu partido de "socialrevolucionário" (Vide o Manifesto do partido "Naródnoie Pravo" datado de 19 de fevereiro de 1894), mas, ao mesmo tempo, se limitem exclusivamente a reformas políticas, evadindo de maneira mais escrupulosa nossos "malditos" problemas socialistas. Um partido que com tanto ardor chama para a luta contra as ilusões, não deveria infundir aos demais ilusões com as primeiras palavras mesmas de seu Manifesto; não deveria falar de socialismo ali onde não há mais que constitucionalismo. Repito, contudo, que não se pode dar valor aos partidários de Naródnoie Pravo sem tomar em consideração o fato de que procedem do Naródnaia Volia. Não se pode deixar de reconhecer por isso que dão um passo a frente, tomando como base a luta exclusivamente política, que não tem relação com o socialismo, em um programa exclusivamente político. Os sociais-democratas desejam de todo o coração êxito aos partidários de Naródnoie Pravo, desejam o crescimento e desenvolvimento de seu partido, desejam que se acerquem de forma mais estreita aos elementos sociais que estão situados sobre o terreno do regime econômico existente[11] e cujos interesses práticos estão ligados realmente, da maneira mais íntima, com o democratismo.
Não poderá sustentar-se por muito tempo o populismo conciliador, covarde, sentimental-sonhador, dos "amigos do povo" quando seja atacado de dois lados: dos radicais políticos, porque esse populismo confia na burocracia e não compreende a necessidade absoluta da luta política; dos sociais-democratas, porque esses populistas intentam atuar pouco menos que como socialistas, não tendo a menor relação com o socialismo, não tendo a menor idéia das causas da opressão do trabalhador e do caráter da presente luta de classes.
[1] Trata-se de apêndice da obra "Quem são os 'Amigos do Povo' e Como Lutam Contra os Socialdemocratas", escrito na primavera/verão de 1894.[Nota dos Tradutores]
[2] Procusto era um bandido de Ática que tinha construído em sua casa um leito de ferro. Tinha por costume sair pelas ruas e deter os viajantes. Convidava-os para jantar em sua casa e quando terminava a refeição estendia-os sobre o leito de ferro. Ajustava a cabeça ao catre da cama de maneira que se sobressaíam pela outra parte às pernas ou os pés cortavam-nos para que o corpo se acomodasse ao tamanho da cama. Se, ao estender uma pessoa na cama, não chegava à cabeceira ou aos pés, desconjuntava-os. Em vez de acomodar a cama ao tamanho das pessoas, fazia que estas se ajustassem às medidas da cama. A mitologia diz que Procusto morreu às mãos de Teseu, que lhe aplicou o mesmo castigo que ele infligia às suas vítimas.[Nota dos Tradutores]
[3] Observe-se que Marx fala aqui da crítica materialista que é a única que considera científica, quer dizer, a crítica que compara os fatos político-jurídicos, sociais, da vida, diária e outros com a economia, com o sistema das relações de produção, com os interesses das classes que inevitavelmente se formam sobre o terreno de todas as relações sociais antagônicas. Que as relações russas de produção são antagônicas, dificilmente haverá quem o ponha em dúvida. Porém ninguém tentou ainda tomá-las como fundamento para semelhante crítica.[Nota de Lênin]
[4] Ver apêndice a segunda edição de "O Capital" Tomo I.[Nota dos Editores]
[5] Carta de Marx a Ruge, setembro de 1843.[Nota dos Editores]
[6] Lenin faz alusão ao partido Narodnoie Pravo (Direito do Povo) organização ilegal de populistas revolucionários criada em 1893, formada principalmente por antigos membros de Naródnoia Volia ("A Vontade do Povo"), que foi rapidamente esmagada pelo governo (no ano seguinte). A maioria logo passou ao partido socialrevolucionário.[Nota dos Editores]
[7] Chefes dos zemstvos( assembléias de províncias e de distritos criadas para colaborar na aplicação das reformas de 1861).[Nota dos Tradutores]
[8] Nadiénov, Morósov, Kasi e Bielov, grandes banqueiros e industriais russos.[Nota dos Editores]
[9] Medida de terra equivalente a 1,09 hectares.[Nota dos Tradutores]
[10] São eles mesmos os que protestam contra a fé no poder taumatúrgico da intelectualidade, os que falam da necessidade de atrair para a luta o povo mesmo. Para isso é necessário ligar essa luta com determinados interesses da vida cotidiana; é necessário, por conseguinte, diferenciar os distintos interesses e incorporá-los por separado à luta...Mas se diluem-se esses diversos interesses com nada mais que reivindicações políticas, compreensíveis unicamente para a intelectualidade, não significa isto retroceder de novo, limitar-se de novo a luta da intelectualidade, cuja impotência acaba de ser reconhecida?[Nota de Lênin]
[11] (Ou seja, capitalismo) e não sobre o terreno da negação necessária desta ordem de coisas e da luta impiedosa contra ela.[Nota de Lênin]

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