“O movimento proletário revolucionário em geral e o movimento comunista em particular, que crescem em todo o mundo, não podem deixar de analisar e desmascarar os erros teóricos do ‘Kautskismo’. Isto é tanto mais necessário quanto o pacifismo e a ‘democracia’ em geral – que não têm as mínimas pretensões de marxismo, mas que, exatamente como Kautsky & Companhia, dissimulam a profundidade das contradições do imperialismo e a inelutabilidade da crise revolucionária que este engendra – são correntes que ainda se encontram extraordinariamente espalhadas em todo o mundo. A luta contra tais tendências é obrigatória para o partido do proletariado, (...)”.[1]
Se nos consideramos comunistas – e isto significa que nos baseamos inteiramente, como afirma Lênin[2], na ciência criada por Marx e Engels, na ciência que a tradição do movimento comunista designa por marxismo-leninismo e que pela primeira vez converteu o socialismo de utopia em ciência – não podemos deixar de ser herdeiros de toda a experiência da luta de classes, de suas lições teóricas e práticas, de toda a experiência da prática comunista na luta de classes, da luta de classes dirigida por seu partido.
Não podemos desconsiderar que a luta de classes nos ensinou muito após Marx e Engels, e mesmo depois de Lênin e Mao Tse-Tung. Não podemos desconsiderar a extraordinária experiência da luta de classes por todo o mundo, a experiência da Revolução Soviética, da Revolução Chinesa, das diversas experiências de construção do socialismo, da luta do proletariado contra a burguesia, da luta de massas contra o fascismo, pela libertação dos países dominados, da heróica luta do povo vietnamita, dos negros nos EUA e tanto mais.
Somos herdeiros de toda a experiência da luta de classes, suas grandes vitórias, seus fracassos e suas crises. Lênin nos mostrou que quando sabemos analisar a fundo a causa de um fracasso na luta de classes e daí tirar lições, esta lição sempre nos ensina mais do que a experiência de uma vitória, porque nos obriga a ir à raiz das coisas. E hoje, diante da crise que vive o movimento revolucionário no mundo todo após o 20º Congresso do PCUS e a cisão do movimento comunista, é necessário que façamos a análise da crise que vivemos, de toda a história da luta de classes, porque a crise do movimento revolucionário não pode nos impedir de ver a outra crise sem precedentes na qual se encontra o imperialismo.
A Revolução está na ordem do dia, e esta é a razão pela qual é tarefa urgente dos comunistas fazer o balanço do movimento revolucionário e, retomando o marxismo-leninismo, armados com a ciência do marxismo-leninismo e com lições tiradas da experiência das lutas de classes, assumir nosso posto junto ao proletariado, fazer a revolução.
Estas são as razões porque avaliamos importante reproduzir aqui a intervenção da camarada Ana Barradas, em sessão de homenagem a Francisco Martins Rodrigues, dirigente comunista português, no Museu República e Resistência em 27/06/08. A experiência de Francisco Martins Rodrigues – dos camaradas portugueses que lutaram e lutam contra o desvio do partido comunista português que se tornou veículos do revisionismo e do avanço da ideologia burguesa dentro do partido e do proletariado, de seus dirigentes que, como diz Lênin no prefácio às edições Francesa e Alemã do “O Imperialismo”[3], se tornaram lugares-tenentes operários da classe dos capitalistas, lugares-tenentes da burguesia do movimento revolucionário– é rica em ensinamentos para todos nós comunistas, daí a importância da intervenção que reproduzimos a seguir.
Falar de Francisco Martins Rodrigues.
Falar de Francisco Martins Rodrigues é falar de uma vida que se orientou desde cedo numa única direcção da qual nunca se afastou: a luta por uma sociedade livre de exploração em que a classe operária pudesse derrubar a burguesia, desenvolver-se e criar o seu próprio sistema de poder.
Mas este trajecto de mais de 60 anos de militância comunista confrontou-se com várias fases de consciência revolucionária. Nos diversos patamares dessa consciência, registaram-se rupturas profundas. É análise dessas sucessivas rupturas que nos dá o traço da evolução de um pensamento que nunca se fixou em dogmas.
A primeira foi a crítica ao engodo do PCP pela unidade com os democratas e o abandono da aliança operário-camponesa.
A ruptura com as águas mornas do PC não se fez num mês. Foi-se fazendo pela acumulação repetida de pequenos incidentes: o mal-estar com as teses direitistas do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, os comentários que FMR ouviu da boca de camaradas sobre o namoro à oposição democrática, a questão da tomada do poder pelo levantamento nacional pacífico ou pela violência revolucionária... uma sucessão de interrogações para a qual não havia resposta dentro ou fora do partido.
Dizia o Chico sobre esse processo de reflexão: “Mesmo sendo em Peniche as condições muito repressivas, havia condições para discutir. Havia uma liberdade de espírito que faltava cá fora, quando estávamos presos às tarefas do aparelho... Em particular as discussões com o Chico Miguel, que na altura ainda era considerado como o esquerdista do comité central, influenciaram me muito. Reflecti muito sobre os anos passados. Descobri com frustração que o trabalho de funcionário tinha me feito perder as ideias políticas radicais que tinha anteriormente. Também teve importância o reavivar, no isolamento da cela, de ideias, de contactos, de discussões com antigos militantes do partido que tinha conhecido quando ainda vivia na legalidade. Gente que tinha estado no Tarrafal, que contava experiências antigas do partido. Toda uma série de coisas que tinham ficado soterradas na minha cabeça e que pouco a pouco se manifestaram.”
O facto decisivo para FMR levar essa ruptura até ao fim foi o desencadeamento da guerra colonial. No plano nacional, o PC conciliava com a burguesia liberal e, com o endurecimento do regime e a crescente repressão nas colónias, mais do que nunca punha-se a questão da violência. Na questão colonial, o PC deixava-se penetrar pelo chauvinismo pequeno-burguês, sem compreender o verdadeiro alcance da luta daqueles povos e do que ela representava de positivo para o povo português.
A segunda ruptura, já no PC(R), teve duas causas principais: a tese do 25 de Abril do povo (a linha dimitroviana da frente unida) que servia de base à acção dos militantes; e a campanha de “bolchevização” (que se saldou afinal na depuração dos dissidentes e na imposição de um pensamento homogéneo).
FMR contrapôs-lhe, nos vários escritos que na altura produziu e que foi entregando ao Comité Central, a noção de hegemonia do proletariado e a luta pela democracia interna.
Encarregado por Diógenes Arruda – o companheiro mais velho e experimentado que, a coberto do prestígio de que gozava o Partido Comunista do Brasil ao qual pertencia se dispôs a apoiar a direcção do PC(R) e que na realidade “tomou conta” dela –, de aprofundar o estudo do 7º congresso da Internacional Comunista em 1935 e da linha aí apresentada por Dimitrov como linha geral a ser seguida por todos os partidos comunistas, FMR encontrou nesse estudo a base teórica que lhe faltava para alicerçar o edifício da suas contestação à linha arrudista. Virava-se o feitiço contra o feiticeiro: os ensinamentos que o militante insatisfeito supostamente iria retirar daquelas teses foram afinal matéria para consolidar e dar consistência à sua oposição de princípio ao centrismo dominante no PC(R). Para FMR, foi “a redescoberta do leninismo”. Disse ele em conclusão: “O dimitrovismo infiltrou-se no conjunto da esquerda à escala mundial e as suas consequências têm sido perversas para o triunfo do proletariado. Prova-o a experiência vivida em Portugal e que não foi talvez o caso mais clamoroso, mas foi um caso muito frisante da aplicação dessa política.”
A terceira ruptura, já depois de constituída a Política Operária, na sequência da saída do PCP(R), foi a ruptura definitiva com as concepções que trazia de trás, reforçada pela própria evolução desastrosa do processo revolucionário derrotado com a restauração plena da burguesia no comando dos destinos do país e pela deriva dos partidos de esquerda para um gradual deslizamento à direita. E a grande lição que o iria guiar para o resto da vida – bem como a nós, seus companheiros que com ele nos agrupámos na nova formação surgida da luta contra o centrismo – foi que, no plano político, contrapor a independência política do proletariado à unidade das forças democráticas implica necessariamente não transigir no essencial com os interesses das outras classes. Escreveu nessa altura: “O que se passou em Portugal depois do 25 de Abril só confirmou aquilo que já se adivinhava antes: que os comunistas, pondo-se ao serviço da unidade das forças democráticas, estão de facto a atraiçoar os interesses a longo prazo do proletariado, porque, como nós podemos ver em Portugal, o proletariado encontrou-se numa crise revolucionária com possibilidades imensas para fazer um avanço revolucionário neste país, e estava inteiramente desarmado porque toda a sua educação tinha sido no sentido de ser uma força de apoio da democracia burguesa. Foi sempre assim que as coisas funcionaram no tempo do fascismo. Pedia-se muito ao proletariado, muito esforço, muito sacrifício, muita organização, mas tudo sem passar os limites daquilo que o programa liberal considerava aceitável. Tudo o que no proletariado tendesse a ultrapassar esse limite e em falar em seu nome próprio e dos seus interesses próprios a longo prazo era chamado "sectarismo", "obreirismo", que só prejudicava a unidade. Portanto, criaram-se gerações de operários muito lutadores, muito combativos, com um espírito de sacrifício tremendo, e que politicamente nem sabiam que a linha política que defendiam era contrária ao interesse a longo prazo da sua classe.”
Este balanço global da actividade dos revolucionários em Portugal, não sendo lisonjeiro para eles e apresentando-se claramente como um mau serviço prestado à classe operária que diziam servir, abriu caminho para a rectificação definitiva na PO de ideias contrabandeadas para a consciência dos comunistas durante o longo período de meio século desde o 7º Congresso.
Três aspectos mereceram desde logo a atenção de FMR:
A questão do estalinismo – nas discussões dentro do PCP em torno das teses do XX Congresso do PCUS, nos anos 50, nas discussões com os chineses quando esteve na China e na Albânia, nos anos 60, e dentro do PC(R), nos anos 70, FMR não encontrara resposta para as suas reservas em relação a Estaline. Os seus escritos sobre o assunto são cristalinos na rejeição do estalinismo como uma deturpação do leninismo destinada a servir os interesses de uma nova classe burguesa instalada no poder na URSS e nos regimes ditos socialistas.
A democracia interna no partido – Para o Chico tornou-se ponto assente de uma vez por todas que o partido não tem uma inteligência sem falhas. Por isso tem de debater as contradições no seu seio e apurar a sua linha através da resolução dialéctica dessas contradições, sem abafar o debate interno, sem impor uma linha política fabricada de baixo para cima e muitas vezes desligada da própria realidade da luta de classes e da situação vivida a cada momento.
A concepção de partido comunista – “O papel do partido não é de modo nenhum o de «fabricar» um movimento revolucionário, mas o de o conduzir à vitória,” disse FMR. Nesta frase lapidar resumiu o essencial do que se deve entender do papel de vanguarda dos comunistas. Eles estão no seu posto para tentar levar o mais longe possível os movimentos revolucionários das massas, impulsionando-o para diante pelo seu esforço e inteligência, e não para os tentar manipular, condicionar ou, pior ainda, inventar derivações no sentido de o conter, distorcer ou contrariar.
Embora viessem de longe as interrogações que estavam na base destas questões, só na PO pôde FMR discuti-las abertamente. Formulou as suas ideias por escrito e publicou uma série de reflexões sobre estes aspectos. Provou que o partido do tempo de Estaline não era o mesmo do tempo de Lenine, em que a vida interna do partido era completamente diferente: vibrante, criativa e aberta à polémica e à discussão das divergências. Demonstrou que a linha dimitroviana do 7º congresso só foi vencedora depois de a nível internacional se ter procedido a uma purga dos dirigentes ditos esquerdistas que persistiam em defender a linha “classe contra classe” aprovada anteriormente como linha geral para o movimento comunista internacional.
FMR estudou e debateu com os seus camaradas da PO todos os pronunciamentos de Lenine sobre a superação das contradições dentro do partido, sobre o debate e a livre circulação de ideias dentro do partido, sobre a necessidade de dar expressão ao conjunto das posições não coincidentes. Por isso se praticou sempre no nosso colectivo uma discussão aberta e franca entre camaradas e se combateu todas as tendências para tentar repor as práticas asfixiantes e degeneradas que conhecíamos das experiências organizativas anteriores.
Deste conjunto de questões, FMR concluiu que, no plano político, era preciso um programa comunista completamente renovado, autónomo, custasse o que custasse. Disse ele: “Eu sei que a insistência nesta ideia, que me parece a única de acordo com o marxismo, a ideia da necessidade de independência política do proletariado, não parece realista à massa dos militantes. Mas é a única que faz sentido: se este sistema não vai evoluir, nem vai desaparecer por si, nem vai entregar o poder, a única perspectiva que existe é do seu derrubamento pela força. E não vale a pena dizermos que "a esmagadora maioria da população é contra o capitalismo, logo a coisa pode-se fazer pacificamente... Tem que haver um núcleo, um sector de classe, cujos interesses de classe próprios lhe permitam ver que para além deste regime podemos organizar um regime socialista, podemos expropriar a burguesia para criar o nosso sistema. Depois há outros sectores que estão descontentes, que vão aderir, mas que não podem assumir essa visão de classe. Tem que haver forças revolucionárias e aliados de primeira ordem, aliados de segunda ordem, forças a neutralizar e forças a hostilizar e por aí fora.”
Concluiu também que, no plano organizativo, este objectivo passava pela rejeição das práticas estalinistas através de um aprofundamento do estudo das práticas bolcheviques e da adaptação dessas experiências à situação vivida na actualidade pelos comunistas.
Por isso, como colectivo, introduzimos hábitos novos na nossa prática e na convivência entre camaradas. Na PO reinou sempre um espírito de debate ideológico, expressão livre de ideias e gosto pelo estudo, sem nunca perdermos de vista a intervenção prática. Combateu-se o dogmatismo, a frase feita, o pensamento formatado e acrítico, incentivou-se a participação criativa, acarinhou-se o esforço de elevação teórica, criou-se um colectivo que tem resistido a todas as dificuldades e crises, incluindo esta actual, a maior de todas, em que, apesar de termos perdido o nosso principal suporte e dirigente, mesmo assim temos conseguido manter-nos coesos e activos na definição das nossas tarefas principais.
Aprendemos com ele a não ter medo do confronto com ideias diferentes das nossas, o gosto pelo diálogo e a superação de contradições.
Aprendemos com ele a aguentar na adversidade, “cerrar os dentes e continuar em frente”, a não nos deixarmos abater pelo isolamento, a nunca perder de vista os nossos objectivos, custe o que custar.
Aprendemos com ele que, com a história de conciliação de classes que caracteriza a experiência portuguesa, nenhuma tarefa se deverá sobrepor à necessidade de prosseguir na busca de aprofundamentos teóricos sobre a linha que os comunistas devem ir criando de acordo com as circunstâncias em que se encontram a cada momento histórico.
Há dois anos dizia FMR: “Não estão ainda reunidos os elementos para um PC e nem mesmo para um pré-partido de tipo comunista.” Mas acrescentava que a trincheira do comunismo continuava de pé. Essa nunca pode ser abandonada, mesmo nas situações mais adversas.
É nesse espírito que pensamos organizar o colóquio Os comunistas em Portugal. Com ele queremos celebrar a caminhada que tantas gerações esforçadas de comunistas têm percorrido, apontar os seus erros e insuficiências, descobrir novos caminhos, desdogmatizar e criar um sentimento de confiança inabalável na capacidade revolucionária dos explorados, como era a do Chico, que ainda em Janeiro passado afirmou: “Podemos ainda ser poucos e fracos. Mas as tempestades que aí vêm vão-nos obrigar a ser muitos e muitas. O partido que dizem que já passou de moda – não o partido-empresa, não o partido-administração, não o partido-negócio, mas o partido dos revolucionários e das revolucionárias, esse há-de voltar. Porque é preciso acabar com o pesadelo e começarmos a viver como seres humanos”.
Falar do Chico é tudo isto e é também falar de alguém que não teve medo de dizer: “Quero estar sempre incondicionalmente do lado da força que representa um avanço e não do lado da força que representa um retrocesso. Já sei que perco o direito a ser classificado de humanista, mas isso não me aflige. O pior é, perante um grande choque de massas, pôr-se de parte ou pôr-se contra.”
[1] LÊNIN, V. I. O imperialismo, fase superior do capitalismo. Lisboa: Edições Avante, 1975, p. 24.
[2] LÊNIN, V. I. Nuestro programa, In.: Obras Completas, tomo 4, Moscú: Editorial Progreso, 1981.
[3] LÊNIN, V. I. O imperialismo, fase superior do capitalismo. Lisboa: Edições Avante, 1975, p. 21-26.
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