Pedro Alves
Da histórica
foto acima, tirada durante a Passeata dos 100 Mil no Rio de Janeiro, em junho
de 1968, a luta de classes no Brasil realizou até agora apenas a primeira parte
da frase, com o término da ditadura em 1985, após 21 anos, e sua substituição
por uma democracia burguesa. Realizar a segunda parte da frase caberá ao
próprio povo, encabeçado pela classe operária, dirigida por seu Partido
Comunista.
Nas últimas semanas, vimos, ouvimos, lemos por todos os lados sobre
o golpe de Estado de 1964 e sobre as duas décadas de ditadura que se seguiram: programas
e entrevistas nos meios de comunicação; matérias em jornais, sites e blogs; palestras,
debates e seminários nas universidades; projeções de filmes, lançamentos de
livros. Nesses eventos, quase happenings,
a abordagem hegemônica (e quase consensual) é a de uma grande confraternização
universal[i].
Tudo se parece como se, terminada a ditadura e instaurada (ou restaurada) a
democracia burguesa, todos os brasileiros estaríamos vivendo em um conto de
fadas democrático: “felizes para sempre”.
Na nossa história fabricada, parece que o golpe foi apenas uma
espécie de “putsch de Juiz de Fora”, com
um general de capacete e cachimbo do Popeye marchando sozinho com suas tropas,
e não um golpe de Estado promovido e financiado
pelo fundamental da burguesia brasileira, com amplos estímulo da sua imprensa,
apoio da classe média conservadora e suporte do imperialismo dos EUA.
Assim, teria havido “apenas” uma ditadura (exclusivamente?) militar, e não uma
ditadura de classe, da burguesia, a quem os militares, de fato, serviam.
No relato oficial não há lugar,
portanto, para a luta de classes. Ao invés de instrumento para o aumento da opressão e da
exploração burguesas contra a classe operária e os demais trabalhadores – desde
o dia seguinte ao golpe e durante todo o período – a ditadura teria executado apenas,
de maneira tecnocrática, políticas ortodoxas de ajuste macroeconômico (Campos-Bulhões)
ou medidas em reação à crise internacional (Delfim Netto). Ao invés de promover
combate feroz, porém planejado e sistemático, contra os comunistas, e também os
demais resistentes, visando o desmantelamento de sua organização e de sua influência
nas classes dominadas, a visão hegemônica busca ou reduzir isso exclusivamente à
ação de uma linha dura clandestina, e mesmo assim apenas reativa diante dos
“terroristas”; ou então, ainda que não explicitamente, a justificar a própria repressão,
quando não o golpe, pois os comunistas tampouco teriam ideais “democráticos”.
Enfim, essa visão hegemônica busca apresentar hoje a ditadura como
um período sombrio[ii],
porém passageiro, da história do país. Período que teria contado com a oposição
praticamente unânime da sociedade brasileira. Nessa nossa democracia, o Brasil,
eterno país do futuro e dos criminosos anistiados, deve olhar sempre para
frente. E assim, seguindo a conhecida frase, caminhamos para sempre repetir
nossa história por não conhecê-la.
Neste pequeno artigo não temos condições de tratar de todas essas
questões – para não falar da nossa falta de capacidade para tanto. O que
pretendemos aqui é abordar um único aspecto, porém a nosso ver central, sobre o
golpe de 1964, a saber: a posição, bem
como a (falta de) reação, dos comunistas em relação ao golpe.
De modo geral, podemos dizer que aos comunistas cabe relembrar
1964 por duas razões principais: a necessidade de recuperar a luta dos
comunistas na resistência à ditadura, prestando a devida homenagem a esses
heróis do povo brasileiro, muitos dos quais entregaram sua vida em combate ou
nas masmorras da ditadura. Mas também pela necessidade ainda maior de
aprendermos com a nossa própria história, de nos autocriticarmos pelos erros
cometidos e assim, seguir com a tarefa imprescindível de construir o Partido
Comunista no país.
Quanto à luta dos comunistas, não obstante a falta de reação do
Partido como um todo ao golpe, a burguesia e seus militares não tinham dúvidas a
respeito de sobre quem deveria cair a repressão desde o primeiro momento. Para
as classes dominantes do país e seus militares, tratava-se de colocar
definitivamente na mais dura clandestinidade o Partido que já não era legal
desde 1947. Tratava-se de buscar destruir sua organização, reprimir, exilar,
prender ou matar os comunistas.
Ainda nos primórdios do golpe, pelo menos duas expressões do ódio
de classe da burguesia aos comunistas ficaram bastante conhecidas. A primeira,
em Recife, quando os gorilas do Exército arrastaram pelas ruas da cidade,
amarrado a um jipe, o líder comunista de origem camponesa Gregório Bezerra, aos 64 anos. Gregório amargaria outros cinco anos
de prisão (prisões que somaram mais de duas décadas em sua vida de militante
comunista), sendo libertado em 1969 com outros quatorze presos políticos
trocados pela libertação do embaixador dos EUA, capturado em ação conjunta das
organizações revolucionárias ALN e MR-8. Permaneceu dez anos no exílio, a maior
parte do tempo na URSS, até sua volta ao país em 1979. Morreu em outubro de
1983.
A segunda é a tentativa de assassinato e a posterior prisão de Carlos Marighella, no Rio de Janeiro.
Percebendo-se seguido por policiais a paisana, Marighella entra em um cinema
buscando despistar seus perseguidores. Apesar de ser uma matinê infantil, os
policiais não hesitam em acender as luzes do cinema e atirar. Atirar para
matar, como mostra a foto acima de maneira inquestionável. Preso e
posteriormente libertado, Marighella cai na clandestinidade, rompe com o PCB e
organiza a ALN, principal organização da resistência armada à ditadura. É
assassinado em novembro de 1969[iii].
Esses dois líderes comunistas foram acompanhados por centenas de
outros exemplos de coragem e heroísmo. Dirigentes comunistas experientes como
Joaquim Câmara Ferreira, Mário Alves, Maurício Grabois, Pedro Pomar; lideranças
revolucionárias como Virgílio Gomes da Silva, Stuart Angel Jones[iv], Carlos
Lamarca, Ângelo Arroyo, Osvaldão, Manoel Lisboa, Emanoel Bezerra, Carlos
Alberto de Freitas; e um sem número de militantes, conhecidos e anônimos, cuja
luta constitui um exemplo inesquecível para os comunistas da geração atual.
A admiração pela trajetória de lutas desses camaradas, o
reconhecimento de seu enorme valor e o imenso orgulho que sentimos por
partilhar com eles o honroso título de comunistas não nos deve impedir, no
entanto, de procedermos uma avaliação crítica sobre o desempenho do Partido
Comunista quando do golpe de 1964.
A primeira constatação que salta aos olhos na análise da atuação
dos comunistas às vésperas e no momento do golpe de 1964 é a da incapacidade do Partido Comunista de
antever a preparação do golpe burguês, a falha na análise concreta da situação
concreta da luta de classes no país naquele momento, o despreparo de organizar
a resistência ao golpe. De tão conhecidas essas questões, achamos
suficiente transcrever apenas duas breves citações de dois dirigentes do PCB à
época. A primeira, de Luiz Carlos Prestes, tirada de discursos pronunciados às
vésperas do golpe, em 27 e 29 de março de 1964, é a famosa frase das “cabeças cortadas”:
“Em
conferência comemorativa [ao aniversário do PCB] no dia 27, no auditório da ABI, [Prestes] afirmou que não havia
condições favoráveis a um golpe reacionário, mas, se este viesse, ‘(...) os
golpistas teriam as cabeças cortadas’. No
dia 29, por ocasião da festa que reuniu milhares de pessoas no Estádio do
Pacaembu, em São Paulo, repetiu a afirmação” (negrito nosso)[v].
Quinze anos após o golpe, no exílio, Gregório Bezerra, que nunca
saiu do PCB, escreve nas suas Memórias sua reflexão sobre o
período, acompanhada do que descreve como o sentimento de uma profunda
angústia:
“A meu
ver, confiamos demasiado no dispositivo
militar dos nossos aliados e subestimamos o dispositivo de nossos inimigos.
Estávamos com a cabeça cheia dos êxitos parciais. Nosso partido não estava preparado para a luta armada e, em
consequência, não preparou a classe operária e as massas trabalhadoras para
enfrentar o golpe” (negrito nosso, pg. 528).
“Tinha
feito o possível para mobilizá-los e prepará-los [os trabalhadores do campo
em Pernambuco] espiritualmente para a
luta. E, justamente quanto era chegado o
momento, não tinha armas! Era forçado, então, a desmobilizá-los, porque, de
outro modo, seria um massacre criminoso e inútil” (negrito nosso, pg. 530).
De um modo geral, acredito que as principais debilidades dos
comunistas em 1964 refletiam, por um lado, a deficiência no domínio da teoria marxista-leninista pelo Partido e,
por outro, sua infiltração pela
ideologia reformista burguesa, que acabou hegemonizando a ideologia do Partido.
Ideologia reformista burguesa que se manifestava especificamente em “conceitos”
como os de transição pacífica, de aliança com a burguesia nacional, os quais
levaram ao abandono da posição revolucionária, a um seguidismo em relação à
burguesia e a secundarização da tarefa de organizar a classe operária e as
demais massas exploradas para a luta revolucionária.
Como afirmam os camaradas do Cem Flores no seu artigo “Convocatória
para a Reconstrução do Partido Revolucionário do Proletariado” (http://www.quefazer.org/convocatoria.html):
“O
predomínio do revisionismo e do reformismo no PCB, materializados na defesa da
transição pacífica para o socialismo em todo o mundo e também no Brasil, na
defesa da revolução nacional e democrática sob direção da burguesia, no
predomínio da linha política que tornava exclusivo o caminho eleitoral e legal,
no abandono do movimento de massas substituído pela construção de um complexo
aparelho sindical-burocrático e a total incapacidade de analisar o estado da
luta de classes, ou seja, a conjuntura, como vai comprovar o golpe de 1964,
tornou o PCB incapaz de esboçar qualquer reação diante da nova ofensiva das
classes dominantes brasileiras e do imperialismo”.
A consequência desse despreparo dos comunistas diante do golpe de
Estado da burguesia acaba sendo seguidos fracionamentos em organizações
revolucionárias que por seus próprios erros estratégicos e táticos e pela
violenta repressão do aparelho de estado capitalista, acabam sendo derrotadas
pela ditadura.
O período seguinte, da dita “abertura” ou “transição democrática”,
testemunhou algumas tentativas de reorganização dos comunistas, sem que se
tenha logrado reconstituir o Partido, retomar sua influência nas massas
trabalhadoras ou avançar no domínio da teoria marxista-leninista. Esse longo
período de ausência de uma posição comunista, revolucionária, entre a classe
operária e as massas exploradas, desde o final dos anos 1970/início dos anos
1980 até o presente, levou tanto a um refluxo das classes dominadas na luta de
classes quanto à hegemonia das posições e organizações reformistas e
revisionistas burguesas, encabeçadas pelo PT e pela CUT.
Concluímos essas nossas breves lições, tiradas da experiência
histórica dos últimos cinquenta anos da luta de classes no país, com o
chamamento que os camaradas do blog Cem Flores fazem na contracapa do seu livro
“Luta
de Classes, Crise do Imperialismo e a Nova Divisão Internacional do Trabalho”
(http://cemflores.blogspot.com.br/2013/09/luta-de-classes-crise-do-imperialismo-e_24.html) sob
as tarefas para a reconstrução do Partido Comunista:
“Primeira,
retomar o marxismo-leninismo no nível do desenvolvimento em que se encontra
hoje. Segunda, reconstruir o partido revolucionário, unidade indissolúvel da
teoria e da prática. Terceira, aprofundar nossas ligações com as massas dentro
do princípio de que só as massas dirigidas pela classe operária e seu partido,
armado da teoria revolucionária, podem fazer a revolução”.
[i] Como que a validar esse consenso, exceção que confirma a regra, restariam
apenas um punhado de múmias
insepultas do Clube Militar, os Ninis e os Bolsonaros da vida, apoiados por
algumas dezenas de reacionários hipócritas da reedição farsesca da Marcha da
Família com Deus pela Liberdade.
[ii] E para alguns burgueses, nem tão sombrio assim. Veja-se, por
exemplo, o famoso editorial da Folha de São Paulo, de 17 de fevereiro de 2009,
denominando a ditadura brasileira de “ditabranda” (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm).
Só
para lembrar 1: o editorial, exalando ódio de classe, compara favoravelmente a
ditadura brasileira ao governo de Hugo Chávez...
Só
para lembrar 2: o termo “ditabranda” não foi criação da Folha de São Paulo. Ele
foi usado, entre outros, por Pinochet (http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-que-a-falacia-da-ditabranda-revela%0d%0a/4/16796 e http://pt.wikipedia.org/wiki/Ditabranda).
Só
para lembrar 3: a Folha é o jornal que assumidamente (e orgulhosamente?) apoiou
o golpe e auxiliou a repressão: “A Folha
apoiou o golpe militar de 1964, como praticamente toda a grande imprensa
brasileira. ... A partir de 1969, a ‘Folha da Tarde’ alinhou-se ao esquema de
repressão à luta armada, publicando manchetes que exaltavam as operações
militares. ... A entrega da Redação da ‘Folha da Tarde’ a jornalistas
entusiasmados com a linha dura militar (vários deles eram policiais)... Segundo
relato depois divulgado por militantes presos na época, caminhonetes de entrega
do jornal teriam sido usados por agentes da repressão” (http://www1.folha.uol.com.br/folha90anos/877777-os-90-anos-da-folha-em-9-atos.shtml).
[iii] Detalhes dessas prisões podem ser lidos nos relatos de próprio
punho desses camaradas. Ver Memórias, de Gregório Bezerra, de
1979, reeditado pela Boitempo em 2011, especialmente os capítulos 8 e 9 da
segunda parte. Ver também Por Que Resisti à Prisão, de Carlos
Marighella, de 1965, reeditado pela Brasiliense/EdUFBa/Olodum, em 1995,
disponível em http://dhnet.org.br/verdade/resistencia/livro_carlos_marighella_por_que_resisti_a_prisao.pdf.
[iv] Quem não se emociona ao ouvir os versos de Cálice, de Chico Buarque
e Gilberto Gil, de 1973, “Quero perder de
vez tua cabeça/Minha cabeça perder teu juízo/Quero cheirar fumaça de óleo
diesel/Me embriagar até que alguém me esqueça” e lembrar o martírio, aos 26
anos, desse revolucionário, morto após torturas ao ser arrastado com a boca
amarrada à descarga de um jipe?
Ou
ao ouvir Angélica, de Chico e Miltinho, de 1977, e lembrar de Zuzu
Angel, mãe coragem de Stuart, “Quem é
essa mulher/Que canta como dobra um sino/Queria cantar por meu menino/Que ele
já não pode mais cantar”?
[v] Jacob Gorender, Combate nas Trevas. 5ª ed. São
Paulo: Ed. Ática, 1998, pg. 70.
3 comentários:
Parte 1
"Tese 8
A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfren-tam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no séculos XX “ainda” sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável."
Sobre o conceito de história, Benjamin, 1940
Benjamin escreveu isso em pleno nazi-fascismo, quando a barbárie da civilização capitalista fazia sua grande orgia. Quando o irracional e o cínico não era mais fraqueza mas força do sistema. Nesse beco sem saída, que fazer, denunciar a traição da burguesia internacional em relação a seus idéias revolucionários, ao progresso universal? Para ele, abandonar a própria teoria da história burguesa, na crença no progresso linear do capitalismo. A posição proletária na teoria e política não pode continuar usando os mesmos paradigmas de entender a história que a burguesia. Pois eles não correspondem à trajetória dos oprimidos e só servem para gerar ilusão e choques de realidade. Quão inútil apostar as fichas na paz e na legalidade quando historicamente seus antepassados viveram a exceção como regra -a força, a violência bruta, a exploração, o massacre. Um conceito próprio de história é condição fundamente de uma prática capaz de fazer uma revolução em prol das classes oprimidas. Ver a história avançando pelo seu lado mau, como afirmava Marx é condição de vitória dos oprimidos - não há deus nem razão a nosso lado, só a organização e a força.
Uso esse filósofo judeu de história trágica não para indicá-lo como caminho teórico fundamental, mas para pensar uma questão específica levantada no texto: a relação entre democracia e ditadura, entre legalidade e exceção, entre o suposto normal e patológico do estado capitalista. A tese 8 nos faz lembrar o quanto esse discurso hegemônico sobre o aniversário da ditadura inclusive na esquerda é ingênua, perigosa e mentirosa. Faz uso do paradigma e ideologia dominante. Quando uso a democracia como regime puro e desejável, acima da luta de classes, caio no canto da sereia da visão das classes dominantes. Me faz esquecer da exceção em que vivem ainda milhões de amarildos, operários mortos em estádios, camponeses de eldorados diversos; da volta da política de anti-terrorismo e prisões políticas em protestos, inteligência contra "cidadãos", guerra interna... Me faz esquecer do concreto e ver só o plano formal e límpido das passagens da constituição democrática cidadã. Formal, límpido e fixo: como disse o texto, a noção de que alcançamos o paraíso, e o passado sombrio não tem chance de voltar.
Mas até mesmo esse passado mais sombrio tem voltado! A marcha da família, os neofascismos no mundo.., como é possível? O democrático ingênuo entra em pane.
Parte 2
Esse discurso abandona o fundamental do materialismo histórico: o regime político é uma superestrutura da sociedade, e não posso compreendê-lo sem fazer referência aos interesses objetivos de classe, e no caso do estado capitalista, à possibilidade de acumulação do capital, quer seja, necessidade objetiva de extrair mais-valia e/com a desorganização da classe operária e das classes que resistem e tem possibilidade de gerar outra sociedade. Sobretudo a seus instrumentos políticos principais. O engraçado é ver marxistas caírem nessa... Marx mostrou diversas vezes a fragilidade da democracia no capitalismo. E Lenin a tendência dos monopólios entrarem em guerras de rapina, crescimento do nacionalismo e racismo que colocam em cheque a paz ( entendido como falta de confronto físico aberto e generalizado e não ausência de exceção em relação aos oprimidos já dito acima).
Em um trecho particular do 18 brumário, o ácido Marx, brinca com a frágil universal da universalidade do direito burguês:
O inevitável estado-maior das liberdades de 1848, a liberdade pessoal, as liberdades de imprensa, de palavra, de associação de reunião, de educação, de religião etc., receberam um uniforme constitucional que as fez invulneráveis. Com efeito, cada uma dessas liberdades é proclamada como direito absoluto do cidadão francês, mas sempre acompanhada da restrição à margem, no sentido de que é ilimitada desde que não esteja limitada pelos"direitos iguais dos outros e pela segurança pública" ou por"leis" destinadas a restabelecer precisamente essa harmonia das liberdades individuais entre si e com a segurança pública. Por exemplo: "Os cidadãos gozam do direito de associação, de reunir-se pacificamente e desarmados, de formular petições e de expressar suas opiniões, quer pela imprensa ou por qualquer outro modo. O gozo desses direitos não sofre qualquer restrição, salvo as impostas pelos direitos iguais dos outros e pela segurança pública. (Capítulo II,§ 8, da Constituição Francesa.)"O ensino é livre. A liberdade de ensino será exercida dentro das condições estabelecidas pela lei e sob o supremo controle do Estado." (Ibidem,§ 9.)"O domicílio de todos os cidadãos é inviolável, exceto nas condições prescritas na lei." (Capítulo II,§ 3.) Etc. etc. A Constituição, por conseguinte, refere-se constantemente a futuras leis orgânicas que deverão pôr em prática aquelas restrições e regular o gozo dessas liberdades irrestritas de maneira que não colidam nem entre si nem com a segurança pública. E mais tarde essas leis orgânicas foram promulgadas pelos amigos da ordem e todas aquelas liberdades foram regulamentadas de tal maneira que a burguesia no gozo delas, se encontra livre de interferência por parte dos direitos iguais das outras classes. Onde são vedadas inteiramente essas liberdades"aos outros" ou permitido o seu gozo sob condições que não passam de armadilhas policiais, isto é feito sempre apenas no interesse da"segurança pública", isto é, da segurança da burguesia, como prescreve a Constituição. Como resultado, ambos os lados invocam devidamente, e com pleno direito, a Constituição: os amigos da ordem, que ab-rogam todas essas liberdades, e os democratas, que as reivindicam. Pois cada parágrafo da Constituição encerra sua própria antítese, sua própria Câmara Alta e Câmara Baixa, isto é, liberdade na frase geral, ab-rogação da liberdade na nota à margem. Assim, desde que o nome da liberdade seja respeitado c impedida apenas a sua realização efetiva - de acordo com a lei, naturalmente - a existência constitucional da liberdade permanece intacta, inviolada, por mais mortais que sejam os golpes assestados contra sua existência na vida real.
Parte 3
A antítese (ou paradoxo) que fala Marx interna a constituição burguesa, se relaciona a um conteúdo não presente na generalidade do discurso do direito: a luta entre as classes. A contradição nos termos é uma contradição aparente, pois seu ideal prático é servir para as classes dominantes com a ilusão de uma vontade popular nacional, de todo o povo. E toda vez que essa ilusão ganha força reivindicativa e ameaça o poder de estado dos dominantes é legalmente possível a suspensão do ordenamento jurídico para a manutenção da ordem e da lei. O que Joao Bernardo chama de legitimidade democrática do fascismo dentro de um regime capitalista. Suspender a democracia para garantir a democracia para aqueles realmente sujeitos de direito no plano da "sociedade civil". Cada época arruma sua justificação ideológico, seu inimigo, seus procedimentos específicos, de acordo com a conjuntura e a gravidade. Mas é uma questão geral a possibilidade real e constante do estado de sítio, exceção... Ou seja ditadura. Nossa grande constituição cidadã não é diferente! Não é uma aberração completa aqueles que pedem intervenção militar constitucionalmente respaldada, ou os que negam o termo ditadura de 64. Afinal, as forças armadas garantem os poderes constitucionais, a lei e a ordem desse estado, ou o acionar o estado de sítio em situações de ameaça ao estado é previsto e totalmente possível dentro da lei. O governo e as classes dominantes tem a faca é o queijo na mão para decidir, inclusive mobilizando a opinião pública, o que é atentado a ordem e a lei.
Ficar preso à legalidade, à ingenuidade da história boa e lutar pelos oprimidos é ficar sem chão. Como o partido ficou na crença de prestes. Um jogador não pode jogar para vencer se confiar num adversário que também é juiz da partida (e nada honesto). Que fique a lição aos lutadores nesses períodos tão agitados. Muito pé no chão. Não podemos contar com o que não é nosso de fato e podemos perder por completo a qualquer momento. Como diz Benjamin, precisamos de uma exceção nossa, verdadeira, que faça parar a regra da história que é a barbárie para os oprimidos. A exceção deles é a regra, a repetição. A nossa o novo, e a vingança.
E para acabar de maneira mais literária e alegórica, ainda, cito outro judeu muito conhecido de Benjamin:
"Ai de mim", disse o rato, "o mundo está ficando menor a cada dia. No começo, era tão grande que fiquei com medo. Continuei correndo, correndo, e fiquei contente quando por fim vi muros a grande distância, à direita, à esquerda, mas esses altos muros estreitaram-se com tanta rapidez que eis-me já na última câmara, e lá, no canto, está a ratoeira em que devo cair."
"Mas você precisa apenas mudar de direção", disse o gato, e o devorou.
Frans Kafka, em Uma fábula curta.
Que a esquerda não seja sempre o rato, ingênuo a correr livre na casa alheia e por fim clamando justiça a sabe lá quem! Ao senso moral do gato? Rezar pelo seu ímpeto vegetariano?
Postar um comentário