Com
o fracasso das negociações de paz no Egito, recomeçaram os confrontos na Faixa
de Gaza. A morte de uma criança de quatro anos em Israel reacendeu o clamor de
vingança do governo israelense. Mas o que dizer das quase 500 crianças mortas
em Gaza?
Há
alguns dias, os principais jornais dos Estados Unidos publicaram uma propaganda
de página inteira, assinada pelo Prêmio Nobel da Paz Elie Wiesel, em que ele iguala
a civilização ocidental às suas origens religiosas, reduz a luta de libertação
nacional da Palestina ao Hamas, e os compara aos nazistas[1]. Para a direita
israelense, assim como sua congênere nos EUA e nos demais países imperialistas,
é bastante apropriado manter esse “conflito” (palavra neutra que permite
esconder a assimetria entre as partes e ocultar o opressor) apenas sob sua
aparência religiosa ou, como diz Wiesel, como “a batalha da civilização contra a barbárie”.
Estaríamos
testemunhando um confronto entre o “povo escolhido”, na “terra prometida”, e
seus ocupantes. Ou, pelo outro lado, entre fieis e infiéis. Nesse “conflito
religioso”, todos têm razão, partindo de seus livros “sagrados”. O que é o
mesmo que dizer que ninguém tem razão.
A
acusação de barbárie contra os muçulmanos é engrossada pela recente decapitação
do jornalista americano James Foley, preso pelos fundamentalistas do
autodenominado Estado Islâmico na Síria. Alguém lembrou de assassinato e torturas
cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib no Iraque, há dez
anos[2]? Ou do assassinato do
primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin por militante da extrema-direita
ortodoxa em Tel Aviv, há quase vinte? Os muçulmanos do Hamas que executaram 18
alegados colaboradores de Israel são bárbaros. E os protestantes do Sul dos
EUA, que na primeira metade do século XX promoveram muitas centenas de enforcamentos
públicos de negros por... serem negros?
O linchamento de T. Shipp e A. Smith em
Indiana em 1930 inspirou A. Meeropol a escrever “Strange Fruit” (http://www.theguardian.com/music/2011/feb/16/protest-songs-billie-holiday-strange-fruit).
Religião,
religião... Como serves de justificativa à dominação e opressão de classe das classes
dominantes, como buscas apaziguar a justa revolta das classes dominadas, como
te prestas a justificar o racismo, a mortandade.
Só
que assim como em todos os casos de “conflitos religiosos”, também na questão
Palestina existem razões mais profundas, bases materiais, que a explicam. Seu aspecto principal é a luta por
libertação nacional do povo palestino, contra a ocupação de seu país por um
país estrangeiro, contra o colonialismo israelense. Questão agravada por
quase uma década de bloqueio econômico da Faixa de Gaza, pela exploração e
humilhação cotidianas da população palestina pelo exército invasor, pela
cidadania de segunda classe dos palestinos em Israel.
É
essa questão concreta que impulsiona a resistência palestina, desde a Fatah,
antigamente combativa, às Intifadas e à atual resistência ao invasor[3]. É por isso que dizemos que a luta palestina se fortalecerá e que a
causa da direita israelense e de todos os reacionários ao seu redor se
enfraquecerá. É por isso que dizemos que a luta palestina conta com a
solidariedade internacionalista, inclusive dentro de Israel e de grupos judeus
mundo afora.
Exemplo
disso é o manifesto que o Blog Cem
Flores traduz e publica abaixo. Organizado pela Rede Internacional Judaica Antissionista
(International Jewish Anti-Zionist
Network, IJAN), o manifesto reúne assinaturas de mais de 300 sobreviventes
de campos de concentração nazistas e seus descendentes. Sem meias palavras,
condenam “inequivocamente” o massacre de palestinos em Gaza e a ocupação e
colonização israelense. Se contrapõem diretamente ao que chamam de “abuso da
nossa história” por Elie Wiesel, na tentativa de manipular o genocídio nazista
para buscar justificar os ataques a Gaza. Defendem o fim de todas as formas de
racismo, incluindo o genocídio contra os palestinos, o boicote à Israel e o fim
imediato do cerco e do bloqueio contra Gaza.
Judeus sobreviventes e descendentes de
sobreviventes e de vítimas do genocídio nazista condenam inequivocamente o
massacre de palestinos em Gaza
Na qualidade
de judeus sobreviventes e de descendentes de sobreviventes e de vítimas do
genocídio nazista, nós condenamos inequivocamente o massacre de palestinos em
Gaza e a ocupação e colonização em curso da Palestina histórica. Nós também
condenamos os Estados Unidos por proverem Israel dos recursos para desencadear
o ataque, e aos estados ocidentais de forma mais geral por usarem sua
musculatura diplomática para proteger Israel da condenação. Genocídio começa
com o silêncio do mundo.
Nós estamos
alarmados pela desumanização racista extremada dos palestinos na sociedade
israelense, que chegou às raias da loucura. Em Israel, políticos e colunistas
do Times de Israel e do Jerusalem Post tem defendido abertamente o genocídio de
palestinos[4] e a
direita israelense está adotando insígnias neonazistas.
Além disso,
nós estamos indignados e ultrajados pelo abuso da nossa história cometido por
Elie Wiesel nestas páginas[5] para
promover falsidades óbvias utilizadas para justificar o injustificável: o
esforço total de Israel para destruir Gaza e o assassinato de quase dois mil
palestinos, incluindo muitas centenas de crianças. Nada pode justificar o
bombardeio de abrigos da ONU, casas, hospitais e universidades. Nada pode
justificar privar as pessoas de eletricidade e água.
Nós devemos
levantar nossas vozes coletivamente e usar nossa força coletiva para acabar de
vez com todas as formas de racismo, incluindo o genocídio em curso da população
palestina. Nós exigimos o fim imediato do cerco e do bloqueio contra Gaza. Nós
exigimos o completo boicote econômico, cultural e acadêmico de Israel. “Nunca
mais” deve significar NUNCA MAIS PARA NINGUÉM!
Assinado, [no link abaixo, além
do manifesto original em inglês, seguem, até o momento, 327 assinaturas]
[1] O anúncio pode ser visto em http://www.algemeiner.com/wp-content/uploads/2014/08/Elie-Wiesel-Hamas-Child-Sacrifice.pdf. Wiesel afirma que “Com
essas narrativas [de Abraão], começaram o monoteísmo e a civilização
ocidental”, “Durante a minha própria vida, eu vi crianças judias atiradas ao fogo. E
agora eu vejo crianças muçulmanas usadas como escudos humanos” e “população americana deve apoiar firmemente o
povo de Israel”.
[2] A página em inglês da Wikipedia tem um detalhado relato dos
crimes de guerra cometidos pelas Forças Armadas dos Estados Unidos na prisão de
Abu Ghraib: http://en.wikipedia.org/wiki/Abu_Ghraib_torture_and_prisoner_abuse. A página em português é bem mais resumida: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pris%C3%A3o_de_Abu_Ghraib.
[3] É esse aspecto objetivo, o papel de liderança e combatividade na
resistência ao invasor, que explica a importância adquirida pelo Hamas com a
falência da Fatah, e não seu fundamentalismo religioso. Claro que é muito
conveniente às classes dominantes e sua imprensa esquecer isso. No entanto,
basta olhar a foto e a legenda que ilustram a matéria de O Globo sobre as três
lideranças do braço armado do Hamas assassinadas por Israel: “dezenas de
milhares de palestinos marcham durante o funeral...” (http://oglobo.globo.com/mundo/quem-eram-os-membros-do-hamas-mortos-13680958)
[4] O link a seguir apresenta uma pequena lista dessas matérias: http://smpalestine.com/2014/08/02/list-of-op-eds-calling-for-the-elimination-of-gaza/. Destaca-se uma publicada no Times de Israel denominada “Quando o Genocídio é Permitido”, que nem
precisa de comentários.
[5] Refere-se às páginas do New York Times, um dos jornais que
publicou a publicidade de Wiesel. O IJAN buscava doações para publicar seu
manifesto nas páginas do mesmo jornal, o que conseguiu no dia 23 de agosto (http://www.haaretz.com/news/diplomacy-defense/1.612072).
2 comentários:
A foto do soldado com a menina não é de Gaza, muito menos o soldado é israelense, eles não usam essas roupas ou essas armas. Talvez seja na Siria, ou mesmo encenada.
Caro Dani,
Obrigado pelo seu comentário. A imagem a que você se refere, de um soldado pisando no peito de uma menina deitada e apontando para ela sua arma, está disponível no link informado abaixo da foto, que republica o relato de Vladimir Safatle de uma viagem à Palestina, publicado originalmente na Folha de São Paulo em 05.02.2012 (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/24010-aqui-nao-ha-nada-para-ver.shtml), com a seguinte legenda “Retrato real da ocupação da Palestina pelo estado terrorista de Israel”.
Não dispomos de fontes alternativas para a verificação da autenticidade da foto. No entanto, pesquisando para buscar essa autenticação, selecionamos outros casos de agressões do exército israelense a crianças e adolescentes palestinos, cujos links informamos abaixo:
- O UOL publica vídeos de soldados israelenses prendendo criança de aproximadamente 5 anos: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2013/07/11/video-mostra-soldados-israelenses-prendendo-crianca-palestina-de-5-anos.htm.
- O link http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/03/video-revela-soldados-israelenses-espancando-criancas-palestinas.html nos apresenta vídeo com a prisão, em 2013, de várias crianças, incluindo algumas entre 8 e 10 anos.
- Os dois links acima divulgam vídeos da ONG de direitos humanos B’Tselem. Mais vídeos do B’Tselem no You Tube: https://www.youtube.com/channel/UC1jcOywn7roFr3JcSaEVozg.
- A BBC, com base em informações da mesma B’Tselem informa da prisão de crianças palestinas e seu julgamento em tribunais militares israelenses: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/07/110718_israel_criancas_palestinas_cc.shtml.
- Esse, digamos, “mal” (com “L” mesmo) comportamento do exército de Israel, de torturar e prender crianças em isolamento, já foi denunciado pela ONU, em junho de 2013: http://www.portugues.rfi.fr/mundo/20130620-agencia-da-onu-acusa-israel-de-violar-direitos-de-criancas-palestinas.
Para terminar, lembramos da famosa foto de 2006 de crianças israelenses mandando “mensagens de amor” para suas homólogas libanesas. Só que em mísseis...: http://universae.blogspot.com.br/2010/11/intelectuais-protestam-contra-racismo.html.
Saudações comunistas,
Cem Flores
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