quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Brasil: Crise e Regressão (Parte 3)


Postamos abaixo a terceira parte (de um total de quatro) da sequência de publicações sobre a conjuntura econômica brasileira, analisando os desdobramentos em nossa formação da crise do imperialismo e dos rearranjos da economia mundial, e seus impactos nas classes dominadas. Nesse documento abordamos a tendência de reprimarização e especialização na produção de commodities para exportação.
A primeira parte do documento pode ser acessada aqui (http://cemflores.blogspot.com.br/2014/11/teses-sobre-conjuntura-nacional.html) e a segunda parte aqui (http://cemflores.blogspot.com.br/2014/12/brasil-crise-e-regressao-parte-2.html).

V. Reprimarização

constituição de um setor agroindustrial voltado à exportação. Na exportação de commodities minerais. Assim, o pólo dinâmico da economia se transfere para setores voltados à exportação. Portanto, um conjunto de setores que se realizam no exterior. No geral, setores de elaboração de produtos primários. Ou seja, os novos setores dinâmicos têm seu ciclo produtivo concluído no exterior, realizado no exterior. Nesse sentido, o Brasil aprofunda a característica de país exportador de mercadorias intensivas em força de trabalho e derivadas da exploração de seus recursos naturais, baseando-se, para competir no mercado mundial, em sua disponibilidade de força de trabalho barata e de pouca qualidade. A especialização na produção e exportação de commodities é outra das características da regressão colonial”.
(Formação econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de novo tipo, negritos nossos, https://sites.google.com/site/cemescolasrivalizem/home/textos-novos/Regress%C3%A3o.pdf?attredirects=0&d=1)

Também em relação à tendência de reprimarização da economia brasileira, com sua maior especialização na produção e exportação de commodities agropecuárias e minerais, apontadas no texto sobre regressão, a realidade do país nos últimos anos, reforçou as tendências apontadas em 2006. Não apenas o agronegócio e a extração mineral representam parcela expressiva da atividade econômica brasileira como as exportações e os fluxos líquidos de divisas são cada vez mais dependentes das vendas desses produtos básicos.


Primeiramente, é necessário ter uma visão mais apropriada, abrangente, do peso do agronegócio na economia brasileira. Devido à sua metodologia, o IBGE adota definição muito restrita de “agropecuária”. Utilizando os dados da segunda tabela do primeiro post desta série sobre a crise econômica brasileira (http://cemflores.blogspot.com.br/2014/11/teses-sobre-conjuntura-nacional.html), vemos que a participação da agropecuária no PIB, segundo as Contas Nacionais, foi de apenas 6,5% no segundo semestre deste ano. Veremos, a seguir, por que esta quantificação restrita da agropecuária não é a mais adequada para a análise da participação desse setor na dinâmica de acumulação capitalista no Brasil.

O Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiróz”, da USP (Cepea/Esalq/USP, http://www.cepea.esalq.usp.br/), calcula, a partir das próprias Contas Nacionais, o “PIB do Agronegócio”, agregando à “agropecuária” todas as atividades a ela diretamente ligadas e dela dependentes, incluindo a produção de insumos, o beneficiamento industrial dos produtos agropecuários e sua distribuição. Os resultados para as duas últimas décadas estão nos gráficos abaixo.

A primeira constatação é que o “agronegócio” (nos cálculos do Cepea, dentre outros[1]) é, pelo menos, quatro vezes maior que a “agropecuária” (medida pelo IBGE nas Contas Nacionais), mostrando que a correta compreensão da conjuntura passa pela busca dos dados empíricos que – ainda que sempre limitados, incompletos, com vieses – aproximem o mais possível as condições efetivas de produção e a dinâmica dos capitais no país. Pelo gráfico abaixo se constata que, de 1995 a 2013, o agronegócio representou, em média, 23,9% do PIB brasileiro, reduzindo-se ligeiramente, para 22,6% nos últimos cinco anos, a partir de 2009.



O segundo gráfico, acima, nos permite constatar uma característica de economias mais baseadas/dependentes de produtos básicos e do comércio exterior. A partir da série de duas décadas apresentadas no gráfico, percebe-se a maior volatilidade do PIB do agronegócio em relação ao PIB total, devido tanto a questões climáticas quanto à sua maior dependência dos oscilantes preços e demais condições dos mercados internacionais. Essa maior volatilidade causou seguidas recessões do agronegócio, como pode ser visto em 1996, 2000, 2005, 2009 e 2012. A maior suscetibilidade do agronegócio a alternar períodos de taxas de crescimento elevado e seguidas recessões é característico às economias dependentes de produtos básicos.

Para identificar os componentes setoriais mais dinâmicos para a acumulação é preciso – da mesma forma que na análise da indústria, desagregando entre extrativa mineral e transformação (ver a parte 2 dessa série em http://cemflores.blogspot.com.br/2014/12/brasil-crise-e-regressao-parte-2.html) – buscar dados mais desagregados, posto que a análise agregada do PIB do agronegócio não permite identificar as profundas transformações na agricultura brasileira nas últimas duas ou três décadas, relacionadas à destinação das terras cultiváveis, aos tipos de lavoura, grau de mecanização e/ou de utilização da força de trabalho, destinação da produção entre mercado interno e externo, etc.

Pelas estatísticas do IBGE sobre área colhida, observamos que, em 1981, a produção somada de feijão e arroz – componentes agrícolas básicos da cesta de consumo dos trabalhadores e, portanto, destinados fundamentalmente ao mercado interno – ocupava 11,1 milhões de hectares, enquanto a soja – cuja produção é exportada quase que na íntegra – era colhida em 8,5 milhões de hectares. Passadas três décadas, a área colhida de feijão e arroz reduziu-se em 54%, para 5,1 milhões de hectares, em 2012; enquanto a de soja atingiu 25 milhões de hectares, com crescimento acumulado de 194%. Ou seja, a área colhida de soja, que em 1981 equivalia a três quartos da de feijão e arroz, em 2012 já era quase o quíntuplo daquela. Geograficamente, essa expansão reflete-se no caminho da soja do Sul ao Sudeste, posteriormente ocupando todo o Centro-Oeste e, mais recentemente, atingindo a parte meridional da Amazônia e penetrando no Nordeste, deslocando cultivos tradicionais e seus produtores.




Resultados ainda mais impressionantes são obtidos quando consideramos as séries de produção agrícola do IBGE. Com o aumento da produtividade (colheita dividida pela área) no período, a produção de arroz cresceu 40,4% e a de feijão, 19,4%. Em comparação, a soja cresceu 339%, mesmo com a queda de 2012. Apenas o aumento da produção de cana de açúcar se compara ao da soja, alcançando 362%. Para comparação, a população brasileira cresceu 64% de 1981 a 2012.

Quando esses resultados são confrontados com a produção e a exportação mundiais de produtos agrícolas (e também pecuários), pode-se dimensionar melhor o significado da tendência de reprimarização. O Brasil é o primeiro produtor e exportador mundial de açúcar e café (alguém se lembrou dos séculos XVI, XVII, XVIII, XIX e da primeira metade do século XX?) e de suco de laranja. Em etanol (também derivado da cana de açúcar), carne bovina e fumo, 2º produtor mundial e 1º exportador. O Brasil é ainda o 2º maior exportador mundial dos dois principais produtos da pauta exportadora brasileira, soja e ferro.



Não dispomos de estatísticas / análises similares para o conjunto das atividades desenvolvidas em torno da produção de commodities minerais. A partir do conjunto de informações disponíveis – dados de PIB, produção industrial, setoriais e de exportação – observamos que a indústria extrativa mineral permanece em expansão e que seus dois setores mais importantes, intensivos em exportação, estão entre os de maior crescimento: minério de ferro e petróleo.

Em relação ao petróleo, a euforia dos “desenvolvimentistas” (e também dos “financistas”, dos “industriais”, dos governos, e de toda a classe dominante) com as perspectivas de uso das multibilionárias das receitas de exploração do pré-sal pode ser bem sintetizada nas afirmações do então presidente Lula de que o Brasil iria ingressar na Opep[2]. O “destino manifesto”, a “vocação verdadeira” do país seria então finalmente descoberta: tornar-se uma Arábia Saudita nos trópicos... A depender do interlocutor, o pré-sal resolverá definitivamente os problemas da educação e da saúde, financiará investimentos em ciência, tecnologia e inovação, desenvolverá a cultura, diminuirá desigualdades regionais, criará todo um complexo industrial petrolífero (refino, derivados, petroquímica, naval, construção, etc.), eliminará os déficits comerciais e em transações correntes e impulsionará o crescimento[3]. Na prática, estamos vendo que o petróleo já tem contribuído para “resolver” os “problemas” de Diretores da Petrobrás, de empreiteiras, de doleiros e de políticos em geral, com bilhões de dólares de contratos superfaturados e propinas. Como já dissemos faz dez anos, o PT governa com o esgoto a céu aberto[4]...

Na realidade, não há exemplos históricos de países dominados no sistema mundial do imperialismo que tenham rompido essa relação de dominação com a descoberta de grandes reservas de petróleo (na lista dos maiores exportadores mundiais estão Arábia Saudita, Irã, Iraque, Nigéria, Emirados Árabes Unidos, Angola, Venezuela e México[5]). Os resultados da produção de petróleo, isto é, os seus lucros, como os oriundos da produção de qualquer mercadoria no capitalismo, são apropriados pela burguesia e demais classes dominantes. No caso do petróleo brasileiro, isso (que é óbvio!) só se torna ainda mais evidente com a quebra do monopólio da Petrobrás, no governo FHC, e com uma dúzia de leilões para exploração do petróleo, feitos igualmente nos governos FHC, Lula e Dilma. Por falar nesses leilões, basta recordar o último, do campo de Libra, o maior do país, entregue pelo preço mínimo com a proposta de um único consórcio (ou, chamando pelo nome correto: cartel), formado pela Shell, que dispensa apresentações; pela francesa Total; por duas chinesas, CNPC e CNOOC; e pela Petrobrás. Ao invés das “nobres” destinações do parágrafo anterior, os R$ 15 bilhões arrecadados pelo leilão foram, integralmente, destinados à geração de um superávit primário recorde em novembro de 2013[6].

No caso da mineração, o Ministério de Minas e Energia (MME) indica que o setor representava diretamente apenas 1,1% do PIB brasileiro em 2008. O valor da produção mineral no país, no entanto, cresceu 900% nos dez anos até 2012, atingindo US$ 55 bilhões, conforme o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram)[7]. Analisando o processo produtivo do minério de ferro, assim como no caso do petróleo, vemos que suas maiores contribuições são nas exportações e na elevada composição orgânica do capital, que é corolário da pouca utilização relativa de força de trabalho no setor[8].

Esse maior e mais dinâmico papel das commodities agropecuárias e minerais na economia brasileira é consequência da nova divisão internacional do trabalho gerada pela longa crise do sistema imperialista mundial iniciada a meados dos anos 1970. Especificamente, estamos tratando da acelerada expansão capitalista da China e de suas relações com os EUA e demais países imperialistas, nas quais a China passou a receber indústrias (principalmente americanas) para constituir um polo de produção industrial de baixo custo e exportar sua produção para os principais países imperialistas, especialmente os EUA e, em seguida, a Europa. Essa China capitalista torna-se, assim, gigantesca demandante de commodities agrícolas (soja), para alimentação humana e ração animal; e minerais, tanto como insumos à produção industrial e aos investimentos (minério de ferro) quanto para energia (petróleo). O marco do aumento dessa demanda internacional chinesa foi sua adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2000.

No entanto, o aspecto determinante dessa tendência à reprimarização da economia brasileira, com sua especialização na produção e exportação de commodities agropecuárias e minerais, está definido pelas condições/contradições internas do país, condições de produção (existência de reservas minerais, disponibilidade de terras, condições climáticas, capacidade de investimento, tecnologia, infraestrutura, etc.) e a luta de classes, as contradições e os rearranjos entre as frações das classes dominantes e sua luta contra as classes dominadas.

O que queremos ressaltar, de forma mais geral, é que esse processo de regressão a uma situação colonial de novo tipo é uma reestruturação da estrutura econômica, de classes, do Brasil; que ocorre a partir do rearranjo que denominamos nova divisão internacional do trabalho no sistema imperialista; porém constitui um processo ativo, no qual o capital se desloca para os novos setores dinâmicos da economia brasileira, criando as condições necessárias para produzir e/ou ampliar enormemente a produção para suprir a crescente demanda internacional e para obter os lucros que ela proporciona.

Em nossa opinião, é apenas partindo dessa análise das condições mais gerais de produção e reprodução do capital, da luta de classes, na formação econômico-social brasileira, que podemos fazer a necessária análise concreta das condições concretas em que se trava a luta de classes em cada conjuntura. É a partir dessa interpretação de seus condicionantes mais gerais que podemos explicar tanto o (curto) período de crescimento nos anos 2000, até 2008, quanto a atual crise econômica brasileira.

Sobre o mencionado papel da China na reprimarização da economia brasileira, achamos que o ponto de partida deve ser tentar quantificar a magnitude de sua demanda por commodities importadas. Em relação aos dois principais produtos exportados pelo Brasil, temos que:

a China, que, por exemplo, no ano 2000 importava 70 milhões de toneladas de minério de ferro, equivalentes a 14% do comércio internacional, em 2008 deu um salto para 444 milhões [aumento de 535%], quase metade das compras externas globais. Na soja, suas compras passaram de 10 milhões de toneladas para quase 60 milhões [aumento de 500%] de 2000 a 2012, saindo sua fatia no mercado de menos de um quinto para quase dois terços[9] (negritos nossos).

Ou seja, o ritmo de crescimento das importações chinesas, a partir da década de 2000, passou a ser o determinante fundamental das condições da realização de commodities no mercado internacional. Essa determinação ocorre tanto nos preços – puxando-os para cima, originando o chamado de “super-ciclo de commodities” ou, como é o caso atualmente, para baixo – quanto nas condições da demanda (majoritariamente chinesa); e oferta, cujo crescimento contínuo nos últimos quinze anos deu origem a claro processo de sobreinvestimento e excesso de produção[10].

Essa pantagruélica demanda chinesa por commodities nas últimas décadas criou novas relações comerciais para aquele país, na busca de fornecedores que, por outro lado, também passavam a constituir destinos para a realização das exportações chinesas de manufaturas. Esse padrão de relacionamento com a China passou a ser a norma para países da América Latina e da África. Como afirma um recente artigo do Le Monde Diplomatique Brasil para o conjunto da América Latina:

Reproduzindo os antigos circuitos comerciais, quando os navios britânicos recolhiam cobre, açúcar e especiarias para Liverpool antes de transportar materiais acabados para a América Latina, os navios de mercadorias e cargueiros latinos que navegam em direção à China cruzam no caminho porta-contêineres que partiam dos portos de Xangai ou de Tianjin. Carregados de produtos manufaturados (91% do total das exportações chinesas para a América Latina), eles representam agora a principal fonte de abastecimento do mercado brasileiro e a segunda para metade dos outros mercados latino-americanos
O valor agregado incorporado nos processos industriais escapa sempre largamente à região [América Latina], cuja relação com a China acentua a ‘reprimarização’ das economias: uma dependência ampliada no mercado mundial e no setor primário, que cria poucas riquezas e empregos” (negrito nosso)[11].  

Especificamente na relação com o Brasil, a China tornou-se, desde 2009, o principal destino das exportações brasileiras (19% do total exportado em 2013) e, também, a principal origem das importações, desde 2012 (15,6% em 2013). As diferenças, no entanto, são gritantes: enquanto quase três quartos das exportações brasileiras para a China compõem-se de apenas duas commodities (soja, 38%, e minério de ferro, 35%; com petróleo como o terceiro produto, 9%), a praticamente totalidade do fluxo de mercadorias no sentido inverso é constituída de produtos manufaturados. Uma “complementaridade” que em tudo lembra as velhas relações metrópole-colônia...

Essa demanda chinesa e a lucratividade que ela possibilitava estimulam a reprodução ampliada do capital nos setores exportadores de commodities, atraindo novos capitais brasileiros e estrangeiros. Somado à tendência de desindustrialização, podemos dizer que o “efeito China”, como expressão da nova divisão internacional do trabalho e do “lugar” que o Brasil nela passou a ocupar, provocou enorme mudança na estrutura produtiva do país, com especial reflexo na pauta exportadora do país. Como afirma a matéria A indústria esmagada (Carta Capital, nº 815, 03.09.2014, pg. 48):

A participação dos produtos industriais no total das exportações do Brasil, de expressivos 80,5% em 1990, caiu para 32,1% em 2000 e 22,5% em 2008 ... A contrapartida da regressão da área de transformação é a reprimarização da economia, evidenciada na pauta de exportações. Entre 1995 e 2013, a participação dos manufaturados caiu de 56,2% para 39,3% e a dos produtos básicos aumentou de 22,9% para 47,8%. ‘Não é apenas mais uma crise, mas a continuidade de uma degradação originada no fim da década de 1970...’, aponta [Wilson] Cano [professor do Instituto de Economia da Unicamp]” (negritos nossos).

Mais especificamente, essa reprimarização da pauta exportadora pode ser avaliada pelo fato de apenas quatro commodities (minério de ferro, soja, petróleo e carnes) representarem mais de 40% do total exportado pelo país a partir de 2011, mais do dobro dos 21% que representavam em 2000. Utilizando dados de 2013, minério de ferro e soja representavam 13% desse total cada um, com exportações anuais de pouco mais de US$ 30 bilhões; petróleo representava 10% (US$ 23 bilhões) e o total de carnes exportadas, 7% (US$ 17 bilhões). Adicionalmente, o Ministério da Agricultura publica estatística das exportações e importações de produtos do agronegócio, ressaltando superávit comercial desses produtos de US$ 82,9 bilhões em 2013, enquanto o país teve superávit comercial de apenas US$ 2,6 bilhões naquele ano[12]. Ou seja, tal como até a primeira metade do século passado, os produtos do agronegócio são as principais fontes líquidas de divisas para o país, possibilitando as importações dos demais bens manufaturados e de consumo.

Assim, o estudo da Fundap mencionado na parte dois desta série (http://cemflores.blogspot.com.br/2014/12/brasil-crise-e-regressao-parte-2.html) chega às seguintes conclusões:

Essa característica estrutural da economia brasileira mostra que o país se transformou predominantemente em exportador de bens de menor valor agregado, especialmente de commodities metálicas e soja, e em importador de produtos industriais de forma generalizada, matérias primas e bens finais de maior ou menor intensidade tecnológica” (negrito nosso)[13].

*          *          *

Embora as características do processo que denominamos regressão a uma situação colonial de novo tipo sejam estruturais, modificações profundas na estrutura econômica brasileira, seus impactos na dinâmica de acumulação do capital variam, dependendo da conjuntura nacional e mundial. O que queremos dizer é que as tendências de rearranjo, de modificação no sistema imperialista, na economia mundial, causadas na tentativa de reação à crise do imperialismo, significam uma inflexão nas tendências que estimularam a regressão, no caso, a reprimarização e especialização na produção e exportação de commodities agropecuárias e minerais. Ou seja, fatores que impulsionaram o crescimento da economia brasileira até 2008 (ou 2010), não estão mais presentes ou estão funcionando em sentido contrário.

O aspecto mais evidente dessa reversão é a trajetória dos preços das commodities nos mercados internacionais. Sua queda recente é consequência tanto dos já sete anos de depressão/recessão/estagnação ao redor do mundo, como das modificações e desaceleração na economia chinesa, reduzindo seu apetite por essas commodities.


FURTADO, João e URIAS, Eduardo. (2013). Recursos Naturais e Desenvolvimento: estudos sobre o potencial dinamizador da mineração na economia brasileira. São Paulo/Ed. dos Autores/IBRAM, 2013, pg. 234. Disponível em http://www.ibram.blog.br/downloads/LivroRecursosNaturais_2013.pdf.

Na tabela acima, podemos ver que houve ciclo sincronizado de alta nos preços de todos os tipos de commodities a partir do final dos anos 1990. Esse chamado “super-ciclo” provocou aumento de 81% na média dos preços internacionais de commodities até o seu auge, em 2010, aumento que superou, com folga, os ciclos anteriores, desde o final do século XIX. O aumento recorde se mantém para os metais (202%), com alta até 2007, e o petróleo (466%), que se manteve até 2008. Para as agrícolas, o aumento de 77%, até 2010, foi superado apenas pelo longo ciclo 1932-1971.

O ponto a destacar na análise da conjuntura recente é o encerramento desse “super-ciclo” há pelo menos cinco anos. Da tabela anterior se observa que a “correção” média dos preços na fase descendente do ciclo supera 50%. Aparentemente ainda há um longo caminho ladeira abaixo... Não é demais lembrar que a queda nos preços internacionais dos principais produtos de exportação de um país leva à queda nos seus termos de troca, diminuindo seu superávit comercial, piorando suas transações correntes e gerando efeitos negativos na produção, vendas, rendas e emprego.

Os termos de troca do comércio exterior brasileiro estão no gráfico abaixo, que apresenta toda a série histórica mensal existente, publicada no sítio do Ipeadata (http://www.ipeadata.gov.br/). No período do ciclo internacional de commodities, o mínimo da série é 89,4, em dezembro de 2002. O ciclo altista representou aumento de 48,4% dos termos de troca brasileiros[14], até seu pico de agosto de 2011. Esse pico não só é o maior de toda a série, iniciada em janeiro de 1978, como a média anual de 2011 é a maior desde 1954, também de acordo com o Ipeadata. De lá para cá, no entanto, os termos de troca já caíram 13,2% (embora ainda estejam acima do pico de 2008) e deverão permanecer com essa mesma tendência declinante.



Quando analisamos o desempenho dos preços de exportação brasileiros, o aspecto que buscamos enfatizar torna-se ainda mais evidente. Como apresentado no gráfico abaixo, diante da magnitude do aumento de preços internacionais a partir de 2003, a evolução desses mesmos preços nas décadas anteriores parece estagnada.

Como esperado, os preços de exportação foram os principais responsáveis pela trajetória dos termos de troca nas últimas décadas. A expansão dos preços totais das exportações brasileiras, até o pico de agosto de 2011, foi de 180,6%. Só que enquanto os preços das exportações de manufaturados “apenas” dobraram, os dos produtos básicos mais que quadruplicaram (305%)! É evidente que, quanto maior a altura, maior o tombo. Assim, os preços dos básicos (commodities) já caíram 21,6% em relação ao pico, enquanto o das manufaturas, apenas 5,4%.

Além da já mencionada queda de 40% nos preços do minério de ferro, também há queda generalizada nos preços das commodities exportadas. Utilizando dados do FMI disponíveis no Ipeadata, os preços internacionais das nossas principais commodities exportadas registraram picos em 2011/2012 e, de lá até junho deste ano, já caíram: soja (-15,2%), carnes (-9,0%), café (-43,0%) e açúcar (-34,3%).



O segundo gráfico acima chama atenção para dois aspectos também fundamentais. Em relação às quantidades vendidas (o índice de volume ou quantum), as mercadorias industrializadas despencaram após 2008 e não mais recuperaram qualquer trajetória minimamente ascendente, comportamento similar ao da produção industrial, conforme analisado no post anterior desta série sobre desindustrialização (http://cemflores.blogspot.com.br/2014/12/brasil-crise-e-regressao-parte-2.html). Este é, portanto, fator adicional de comprovação da perda de competitividade da indústria brasileira. No outro extremo, as exportações de produtos básicos não parecem ter sido atingidas pela crise mundial. A trajetória das quantidades exportadas (média móvel de 12 meses) segue tendência praticamente linear de crescimento nos últimos quase quinze anos.

Considerados os elementos empíricos apresentados ao longo deste texto, nossa avaliação é que as modificações estruturais da economia brasileira que designamos de regressão a uma situação colonial de novo tipo, especificamente seus aspectos constitutivos de desindustrialização (post anterior) e reprimarização, que analisamos neste texto, respondem por grande parte da crise econômica brasileira atual[15]. Especificamente, a conjuntura da economia mundial após 2008/2009 retirou a capacidade da chamada “demanda externa” impulsionar o crescimento do país.

A queda do volume exportado da indústria e a queda dos preços de exportação das commodities levaram as exportações brasileiras a quedas consecutivas em 2012, 2013 e 2014, bem distantes do crescimento médio anual acima de 20% de 2003 a 2011 (com exceção de 2009). Esses resultados eliminaram os superávits comerciais que chegaram a superar os US$ 40 bilhões (2005 a 2006), cairam para US$ 2,6 bilhões em 2013 e devem fechar este ano próximo de zero. Com isso, o saldo dos dólares ingressados no país, que chegou a US$ 87,5 bilhões em 2007, caiu seguidamente até ficar negativo em 2013, US$12,3 bilhões. Neste ano houve ligeira recuperação para US$ 8,6 bilhões até o começo de novembro.

Ou seja, a redução nos preços internacionais dos produtos exportados (e a queda das exportações industriais) reduz o valor total exportado, elimina o superávit comercial, aumenta o déficit em transações correntes para mais de US$ 80 bilhões (quase 4% do PIB), eliminando o impulso da demanda externa, diminuindo o efeito multiplicador das exportações na economia, reduzindo as receitas fiscais (enquanto amplia as pressões da burguesia por maiores gastos fiscais “compensatórios”, ou seja, mais reduções de impostos[16]), e reduzindo os empregos e salários.

A reprimarização também impacta a luta de classes e as disputas das frações das classes dominantes. A burguesia do agronegócio contesta crescentemente os interesses e o peso da burguesia industrial, buscando impor a sua própria agenda que inclui, entre outros, liberalização comercial (o Brasil tornou-se, sob Lula, um dos principais defensores da chamada Rodada Doha da OMC, em defesa da maior liberalização comercial no mundo, o que beneficiava os principais produtos de exportação do Brasil, todos, como vimos, do agronegócio ou da extrativa mineral); acordos internacionais preferenciais com “parceiros” selecionados (nos quais o Brasil obteria alíquotas preferenciais para as exportações do agronegócio, em troca de abrir seu mercado interno com as mesmas alíquotas preferenciais para as exportações desses “parceiros”, principalmente manufaturas e serviços), disputas comerciais (basta lembrar o caso do algodão na OMC, contra os EUA), crédito agrícola barato e direcionado, redução do custo Brasil “da porteira para fora”, defesa do direito irrestrito de propriedade, etc.

A defesa de pautas próprias por essa fração da classe dominante traduziu-se nas acachapantes derrotas impostas nas votações, só para citar dois exemplos, do Código Florestal e da atualização dos índices de produtividade rural. A bancada parlamentar ruralista é, provavelmente, a mais numerosa e bem articulada do Congresso Nacional[17].





[1] Para uma enumeração de fontes alternativas para o cálculo do tamanho do agronegócio no Brasil ver BACHA, Carlos J. C. (2012). Economia e Política Agrícola no Brasil, 2ª ed. São Paulo: Atlas, pgs. 13-20.

[2] Como afirmou Lula ainda em 2007: “Logo, logo o Brasil vai participar da Opep” (http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/11/071110_denizelulaopep_fp.shtml) e reafirmou em 2008: Queremos começar a exploração teste em março de 2009 e começar a produzir petróleo em 2010, quando o Brasil se tornará um grande exportador de petróleo(http://economia.uol.com.br/ultnot/2008/05/13/ult4294u1345.jhtm). No ano seguinte, em 2009, a estória já era outra, mais “ambiciosa”: Não, o Brasil não tem a intenção de exportar petróleo cru. O país quer exportar derivados, a fim de criar uma indústria petroquímica no Brasil, logo “Nós não temos interesse em participar da Opep” (http://oglobo.globo.com/economia/brasil-nao-tem-interesse-em-participar-da-opep-afirma-lula-3211969). Ou seja, um mestre do diversionismo e da empulhação...

[3] Nos termos de lei aprovada no Congresso, distribuindo os recursos dos royalties do petróleo para essas duas áreas (http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2013/07/02/aprovada-destinacao-de-royalties-do-petroleo-para-educacao-e-saude). Estimativas já falam em R$ 135 bilhões.
Para texto mais “acadêmico” sobre as potencialidades econômicas do pré-sal: http://interessenacional.uol.com.br/index.php/edicoes-revista/o-pre-sal-e-a-nova-geografia-economica/.

[4]A Crise do Governo Lula ou Governando com o Esgoto à Céu Aberto”, de julho de 2005 (http://cemflores.blogspot.com.br/2014/11/agora-crise-do-governo-dilma-ou.html).

[5] Nada como olhar diretamente no sítio da CIA (https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/2242rank.html ) para ver essa lista...

[7] Conforme a matéria “Mineração Fica Dez Vezes Maior na Década”, Folha de São Paulo, pg. A15, de 25.12.2012. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/85626-mineracao-fica-dez-vezes-maior-na-decada.shtml.

[8] FURTADO, João e URIAS, Eduardo. (2013). Recursos Naturais e Desenvolvimento: estudos sobre o potencial dinamizador da mineração na economia brasileira. São Paulo/Ed. dos Autores/IBRAM, 2013. Disponível em http://www.ibram.blog.br/downloads/LivroRecursosNaturais_2013.pdf.
o setor de mineração se caracteriza pela necessidade de elevados investimentos para a realização das bases produtivas de extração mineral, que são amortizados ao longo do ciclo produtivo. Essa atividade gera efeitos dinamizadores modestos, uma vez que, por ser intensiva em capital, contrata pouca mão de obra, que representa uma parcela reduzida dos investimentos realizados. Ao mesmo tempo, tem uma baixa demanda de insumos e ciclos produtivos longos” (pg. 201, negritos nossos).
Como o setor de minério de ferro possui encadeamentos importantes na matriz produtiva brasileira, o dinamismo de suas exportações tem impactos positivos sobre a geração de produto e de renda na economia nacional” (pg. 216, negritos nossos).
A alta intensidade de capital fixo e o elevado conteúdo nacional dos bens de investimento demandados pela indústria de minério de ferro fazem de seu investimento um elemento importante para o desenvolvimento da economia nacional, devido aos impactos gerados, direta e indiretamente, sobre a produção nacional e, como consequência, sobre o emprego e a renda” (pg. 216, negritos nossos).

[9] Marcelo Miterhof. “Recursos Nem Tão Naturais”. Folha de São Paulo, B8, de 17.07.2014, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcelomiterhof/2014/07/1487060-recursos-nem-tao-naturais.shtml.

[10] Em relação aos preços internacionais do minério de ferro, no começo de novembro eles apresentavam queda de 43% no ano, voltando aos níveis de junho de 2009 (https://br.financas.yahoo.com/noticias/min%C3%A9rio-ferro-renova-m%C3%ADnima-5-anos-sider%C3%BArgicas-chinesas-164131055--finance.html). A oferta mundial, por outro lado, tem previsão de aumento de 167 milhões de toneladas, em 2014, e de 125 milhões, em 2015, considerando apenas os cinco maiores monopólios produtores internacionais (http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/09/1514887-com-baixa-de-40-minerio-de-ferro-vive-fim-da-era-dourada.shtml). Neste ano, a Vale estima excesso de oferta de 100 milhões de toneladas no mercado internacional (http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,acabou-a-exuberancia-do-minerio-de-ferro-imp-,1567412).
Resultado similar tem sido observado nos preços do petróleo, que ao caírem a menos de US$ 80 por barril, sendo que seis meses atrás estavam em US$ 115, chegaram ao menor patamar desde setembro de 2010, com o aumento da produção nos EUA e a resistência da Opep em cortar a produção (http://brasil.elpais.com/brasil/2014/11/13/economia/1415869346_473950.html).

[11] A China, a Vaca e o Leite, Le Monde Diplomatique Brasil, de setembro deste ano (ano 8, número 86). O artigo não está disponível no sítio do periódico. No sítio em francês (http://www.monde-diplomatique.fr/2014/09/VENTURA/50760), apenas para assinantes.

[13]Nível de atividade no governo Dilma: determinantes do baixo crescimento econômico”. In: Boletim de Economia [28], de junho de 2014. Disponível em  http://novo.fundap.sp.gov.br/arquivos/PDF/Boletim_de_Economia_Fundap_28_jun2014_Conjuntura_Nivel_de_Atividade_no_governo_Dilma.pdf.

[14] Devemos lembrar que os termos de troca são calculados para o total das exportações e importações, ou seja, incluindo também manufaturados, o que amortece os efeitos da alta das commodities.

[15] Não nos propusemos a analisar neste texto outros aspectos relevantes para a explicação da crise como, por exemplo, a estagnação do mercado de crédito, considerado o elevado endividamento dos trabalhadores e das camadas médias.

[16] Especificamente para os exportadores, o governo tornou permanente a isenção de impostos no chamado programa Reintegra (http://blog.planalto.gov.br/brasil-edita-mp-para-estimular-industria-e-mercado-de-capitais/), em julho deste ano.

[17] Dentre muitas análises possíveis, ver “A Bancada Ruralista e o Congresso do Capital”, publicado no sítio da revista Caros Amigos, em 15.10.2014 (http://www.carosamigos.com.br/index.php/politica/eleicoes-2014/4560-a-bancada-ruralista-e-o-congresso-do-capital). De acordo com os próprios “ruralistas”, a bancada tem potencial de agrupar 257 dos 513 deputados federais eleitos neste ano (http://www.canalrural.com.br/noticias/agricultura/bancada-ruralista-sera-fortalecida-congresso-nacional-7971).
Em relação às famosas “contribuições” das empresas para as campanhas eleitorais, a principal empresa das eleições deste ano não foi nenhum banco nem empreiteira. Foi o grupo J&F, dono da JBS, Friboi, etc., grande monopólio do setor de alimentos, consolidado com R$ 7,5 bilhões em empréstimos camaradas do BNDES (http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/11/tcu-rejeita-recurso-e-bndes-tera-que-esclarecer-emprestimos-jbs.html). A J&F “doou” R$ 60,4 milhões apenas para candidaturas a deputado, “ajudando” a eleger 164 dóceis parlamentares. Para o Senado, foram mais R$ 12 milhões, para 12 futuros senadores. No total, as “contribuições” das empresas para as campanhas ao Congresso Nacional superaram R$780 milhões (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/11/1545748-base-aliada-recebeu-60-das-doacoes-na-campanha.shtml).

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