Pode-se afirmar que é impossível
atingir o comunismo sem a transformação do papel da mulher hoje estabelecido. E
essa transformação começa pela libertação do papel que ela cumpre na família,
no aparelho ideológico familiar. Sob o capitalismo a função que a mulher
desempenha na família é a de realização de tarefas que auxiliem na redução do valor
da força de trabalho do proletariado, função essa considerada subordinada ao
papel do homem, ideologicamente identificado como o chefe e aquele que provê as
necessidades da família. Para alterar esse quadro e permitir a maior
participação da mulher na revolução é preciso que ela se liberte dessa pequena
economia doméstica, que a própria família seja alterada.
É precisamente esse o ponto que o
texto da camarada Ana Barradas, que abaixo reproduzimos, nos apresenta: quais
foram as principais mudanças no aparelho familiar e na condição da mulher levadas
a cabo na Rússia após a revolução de 1917. Esse texto pode ser acessado também no blog Bandeira Vermelha.
No artigo é possível ver o quanto o
ímpeto revolucionário levou a mudanças profundas na legislação, estabelecendo "direitos", e as iniciativas práticas que o Estado proletário adotou, mesmo em
período de guerra, para permitir que as mulheres ampliassem sua participação
política e econômica na revolução, libertando-se de suas pretensas
“responsabilidades domésticas”. O texto também nos apresenta os fatores
conjunturais, políticos e ideológicos que, não apenas interromperam essas
mudanças, como as desfizeram, impelindo as mulheres a regressar as suas
condições anteriores. O ascenso ou recuo na luta de classes, do ponto de vista
do proletariado, vão determinando o avanço ou o retrocesso no processo de
transformação do papel da mulher.
Na semana do 08 de março, Dia
Internacional da Mulher, pretendemos com essa publicação estimular o debate sobre
essa questão central, a partir da análise dos fatores que contribuíram para
avançar ou retroceder a luta da mulher, na situação concreta que viveu a
Revolução Russa, aprendendo com aquela experiência e nos permitindo combater de
forma mais efetiva nossos limites e incompreensões sobre esse tema,
condicionante fundamental para a construção da revolução em nossa realidade
atual.
* * *
A família na União Soviética. Crise e
reconstituição 1917/1944.
Ana Barradas
Muitos dos operários e
intelectuais avançados do nosso país que admiram sinceramente as conquistas
revolucionárias da Rússia soviética talvez tenham reticências quanto ao aspecto
concreto da libertação da mulher, tomando as formas de que ela se revestiu como
manifestações excessivas dos primeiros anos. A imagem que têm da mulher
soviética é aquela que foi propagada muito mais tarde: a da mulher produtora,
igual perante a lei, mas simultaneamente recuperada para o papel de esteio da
família.
Louva-se como conquista da
revolução o regime feminino que se consolidou na fase da decadência da
revolução. Ignora-se ou rejeita-se aquilo que de facto foi o processo
emancipador da mulher nos anos imediatos a Outubro de 1917. Nesta questão, como
nas demais, ainda estamos hoje na fase de afastar as cinzas oportunistas,
pequeno-burguesas, que encobrem grandes criações revolucionárias do passado. É
tempo de trazer à luz do dia alguns acontecimentos dessa época, esquecidos,
soterrados ou denegridos pelos revisionistas e outros adeptos das pequenas
“revoluções”, mas que ainda hoje são o exemplo mais avançado de todos os
processos de libertação social jamais verificados.
A LEGISLAÇÃO
BOLCHEVIQUE SOBRE A FAMÍLIA
A 19 e 20 de Dezembro de
1917, poucos dias após o triunfo da revolução, foram promulgados dois decretos,
um sobre a “dissolução do matrimónio” (divórcio) e outro sobre “o casamento
civil, os filhos e o registo do estado civil”: era o primeiro código soviético
da família.
Os dois diplomas revogavam
toda a legislação anterior e faziam inovações que na altura tiveram grande
alcance. De facto, a família autoritária tinha sido até então a célula base da
estrutura da sociedade de classes que se queria abolir. Por conseguinte, o novo
Estado proletário quis dar conteúdo jurídico ao processo de destruição do poder
patriarcal de que a família estava investida, processo esse que pretendia
iniciar, e que era paralelo à abolição da propriedade privada.
Estas leis retiravam ao
marido o estatuto de chefe da família e reconheciam à mulher o direito à
autodeterminação económica, social e sexual. O divórcio foi facilitado e
tornado acessível aos operários e camponeses, podendo ser obtido por simples
pedido de qualquer dos cônjuges, mesmo que não houvesse anuência dos dois, e
sem que fosse necessário fundamentar o acto com motivos. O matrimónio e o
divórcio eram para o Estado assuntos exclusivamente privados e, segundo Batkis
[1], passava a ser estranho à lei soviética o “princípio de culpa” ou o “motivo
de deterioração” do casamento. O registo civil de uma relação conjugal era
facultativo e não eram passíveis de pena as trocas sexuais de um dos dois
parceiros fora dessa relação. No entanto, era considerada “fraude” a
não-comunicação de uma segunda relação ao cônjuge. Depois do divórcio, no caso
de um dos parceiros estar impossibilitado de trabalhar ou sem emprego; o outro
deveria, como “medida de transição”, assegurar-Ihe a subsistência durante seis
meses.
A ilegitimidade dos filhos
foi abolida, e deixou de haver disposições penais contra o incesto, o adultério
e a homossexualidade.
A 31 de Dezembro de 1917, é
criado por decreto um Instituto de protecção da maternidade e da infância. O
decreto de 31 de Maio de 1918 instituiu a educação mista nas escolas. A 20 de
Novembro de 1920, foi legalizado o aborto, que deveria ser clinicamente
assistido e executado por simples desejo da mulher, a expensas do Estado. Era
severamente punido quem praticasse abortos clandestinos. Justificava-se o
decreto na base de que, enquanto a sociedade não tivesse condições para
assegurar a educação colectiva das crianças, e tendo em conta as difíceis
condições de vida na época, não seria lícito exigir das mulheres que tivessem
filhos que não desejassem.
Em 1924, foi suprimida por
decreto a obrigação dos cônjuges escolherem um nome comum.
O silêncio que se tem feito
sobre estes dados resulta numa deturpação histórica que omite um aspecto
particular mas muito significativo dum quadro mais geral: na sua luta pela
construção do socialismo, os bolcheviques, ao mesmo tempo que se lançavam ao
derrube do Estado burguês e aboliam a propriedade privada, procuravam resolver
uma terceira contradição, que dava base às duas primeiras — a família, cuja extinção
era preciso promover. Para isso tinham que pôr em marcha a Iibertaçâo da
mulher, perante a qual a família tradicional não poderia resistir.
A NOVA ORDEM SOCIAL
Embora nunca tenham
declarado preto no branco que lutavam pela abolição da família – processo muito
complexo e gradual, só atingível numa fase mais avançada-, os esforços que
desenvolveram no sentido da emancipação integral da mulher não deixam margem a
dúvidas: eles procuravam activamente transpor para a prática as teorias de Marx
e Engels acerca deste assunto, reconhecendo que essa era uma das condições da
edificação socialista.
Nos anos que se seguiram à
revolução, pode-se dizer que se iniciou um processo de desagregação da família
tradicional. Multiplicaram-se as uniões sexuais livres, sem obrigações mútuas,
sobretudo entre os jovens. A guerra civil, e depois o esforço de reconstrução
económica, não se compadeciam com outro tipo de relações entre os sexos, e
muitas famílias já constituídas desfizeram-se nessa altura. Fazia-se propaganda
activa do amor livre e da integração de todas as mulheres válidas no processo
produtivo.
Esperava-se que o Estado
proviesse às necessidades que tradicionalmente eram satisfeitas pela família:
construíam-se creches, escolas, refeitórios, lavandarias, lares, comunas de
jovens, casas comunitárias, etc. Sonhava-se com uma nova família soviética,
baseada não nas estreitas relações económicas da unidade familiar nuclear, mas
na união voluntária monogâmica, não invariável e rígida, que não estaria
sujeita a constrangimentos materiais e que admitia como inevitável a
possibilidade de mudança. “A monogamia sucessiva será a forma fundamental do
casamento” [2], ousava afirmar Alexandra Kollontai [3] em 1918. O escritor
llya Ehrenburg cria um novo tipo de heroína na literatura, a trabalhadora
independente que tem subsistência económica assegurada pelo seu próprio
trabalho, que se une livremente a um companheiro e que assume responsavelmente
a maternidade, mesmo fora do casamento, porque o Estado se ocupará do destino
dos seus filhos [4]. Para a nova sociedade que se ia modelando, era indiferente
que o amor tomasse a forma de união prolongada e legalizada ou se exprimisse
simplesmente numa ligação passageira.
Que modificações na vida
prática, nos costumes e nas atitudes dos cidadãos, acarretou essa nova ordem
social? Que efeitos teve sobre a família e particularmente sobre a mulher?
Vejamos alguns desses
aspectos:
Uma das bases essenciais
para o novo sistema produtivo era o controle da produção e do consumo. Nos anos
de comunismo de guerra, a partir da primavera de 1918, sob pressão da enorme
escassez dos produtos, em todas as grandes cidades instituiu-se a alimentação
colectiva, através das cantinas municipais, e refeições gratuitas para as
crianças. Havia fome intensa em todo o país, e essas cantinas não se
implantaram largamente por falta de produtos alimentares, nem primavam pela
qualidade das refeições. Apesar disso, em Petrogrado em 1919/1920, cerca de 90
% dos habitantes estavam inscritos na alimentação colectiva. Em Moscovo, onde a
situação alimentar era menos grave, mais de 60 % da população frequentava
regularmente as cantinas. Em 1920, os organismos de alimentação colectiva
serviram 12 milhões de citadinos, incluindo crianças.
Nos centros principais, a
mulher libertou-se assim em grande parte da cozinha, que deixou de ser uma das
condições necessárias da existência da família, e viu poupadas várias horas ao
seu dia de trabalho, embora a insuficiência e fraco valor nutritivo dessas
refeições colectivas a obrigassem a cozinhar “suplementos’’ quando os conseguia
obter.
Esta “separação entre a
cozinha e o casamento” (como lhe chamavam, por analogia com a “separação entre
a igreja e o casamento”), que apenas se esboçou imperfeitamente nesses
primeiros anos de revolução, e que depois foi sendo abandonada, indicava uma
das linhas de desenvolvimento prático de novas formas económicas. Por banal que
pareça, teve grande influência na disponibilidade da mulher para se integrar no
esforço produtivo e nas tarefas da revolução, sob a palavra de ordem “Abaixo as
caçarolas!” que então percorreu o país.
Começava a cair por terra o
mito da mulher “alimentadora”, dedicada a proporcionar ao marido e filhos os
prazeres da mesa, agarrada ao fogão, ao avental e ao pano da louça, e incapaz
para outras preocupações. Punha-se em prática uma forma de consumo mais
económica e mais racional, exigindo menos trabalho, combustível e produtos
alimentares.
Por mais que se lamentasse
a perda da refeição em família, do momento íntimo de satisfação física e de comunicação
entre pais e filhos, e por maior que fosse a resistência a esse novo hábito
colectivista, não se podia deixar de lhe reconhecer as superiores vantagens,
sobretudo em benefício da mulher.
Também as condições de
habitação se alteraram substancialmente, beneficiando acima de todos a mulher.
Vulgarizou-se o alojamento comunitário em 1920 em Moscovo, em 23.000 fogos
havia mais de 8.000 fogos comuns, ou seja, 40 % eram lares comunitários: cozinha
comum, lavandaria central, empregadas de limpeza profissionais, luz e
combustível assegurados, e até em alguns casos creche e jardim de infância.
A família de tipo
capitalista começava a desagregar-se com a atrofia gradual da economia
individual fechada, deixava de ser unidade consumidora, e a mulher libertava-se
das tarefas domésticas improdutivas. Começava a cair por terra o mito da fada
do lar, da mulher absorvida pelos trabalhos repetitivos e esgotantes da casa.
O Estado operário também
chamou a si a protecção à maternidade e as tarefas da educação, e isto porque o
próprio desenvolvimento acelerado do país requeria que a mulher fosse uma
unidade de trabalho produtivo, e encarasse a função de mãe como uma função
social e complementar. Era preciso aliviá-la das preocupações da maternidade e
fazer com que a educação das crianças saísse do quadro da estrutura familiar
para passar a ser uma instituição social a cargo do Estado. Foi promulgada uma
lei que proibia a adopção de crianças abandonadas ou órfãs. Cabia ao Estado
ocupar-se delas. Decretou-se a protecção financeira da maternidade (subsídios
às mães), criou-se uma rede de organismos de protecção à maternidade e de
educação social, assistência pré-natal, centros de aleitamento, creches,
jardins de infância lares infantis, colónias de trabalho, casa de maternidade
para mulheres sós, etc.
Ficou célebre o lar de
crianças fundado em 1921 por Vera Schmidt [5], concebido como estabelecimento
piloto para uma nova forma de puericultura não-autoritária e permitindo a
afirmação sexual da criança.
O instinto maternal passou
a assumir valor colectivo com o lema “Sê uma mãe, não só para o teu filho, mas
para todos os filhos dos operários e camponeses”. A maternidade deixou de ser
um assunto privado, para passar a ser um dever social Começava a cair por terra
o mito da mamã individualista, transbordante de amor pelo seu filho. Os hábitos
colectivos inculcavam-se desde o berço e começava-se a modelar um novo tipo de
cidadão.
A economia socialista ia
destruindo a pequena economia doméstica com base familiar. Aquilo que todas as
leis libertadoras não tinham podido fazer era finalmente realizado pelo Estado
operário: a actividade caseira improdutiva, que roubava inutilmente energias à
mulher, a maternidade como questão privada e penosa, sucumbiam face à
racionalização e colectivização das tarefas de apoio à família, assumidas como
tarefas sociais. Como dizia Lenine: “A verdadeira emancipação da mulher, o
verdadeiro comunismo, só começam no momento em que se desencadeia a luta das
massas (dirigida pelo proletariado, dono do poder) contra essa pequena economia
doméstica, através da sua recomposição massiva numa grande economia
socialista”. [6]
PROJECTO IRREALIZADO
Mas passados os primeiros
anos de intensa euforia e agitação revolucionária, com o país à beira do
desastre, tornou-se claro que o novo Estado não podia substituir-se
integralmente à função da família tradicional. Os problemas sociais
avolumavam-se com a instabilidade familiar, o ritmo de instalação de
equipamentos sociais de tipo colectivo não era suficiente para dar resposta ao
desempenho socializado das tarefas anteriormente entregues à família e à
mulher. Havia prioridades mais importantes na aplicação das forças produtivas,
estava em jogo a sobrevivência do Estado soviético e era preciso um gigantesco
esforço de industrialização que canalizava o essencial dos recursos financeiros
e humanos.
Foi necessário rectificar a
política do novo Estado quanto ao casamento, divórcio e moral sexual. O amor
passou a ser propagandeado menos como uma força biológica, e mais como um
factor social a ser utilizado em benefício da colectividade, que contivesse os
elementos espirituais e morais necessários ao reforço e desenvolvimento do
sentimento de camaradagem, igualdade recíproca, reconhecimento mútuo de
direitos, comunidade de interesses e aspirações. Sobretudo um amor que se
submetesse a um outro tipo de amor mais elevado: o dever em relação à
colectividade.
Assim como na sociedade
burguesa o conceito de amor se submetia aos valores dominantes da concorrência
e do egoísmo, também na nova sociedade se procurava forjar uma nova moral que
submetia o amor às tarefas do colectivismo e da solidariedade social.
Desaparecia a escravatura
conjugal, a prostituição e o conceito individualista da maternidade.
Procurava-se extinguir a família nuclear, para a substituir pela grande família
proletária, baseada na união livre, na igualdade de direitos e deveres do homem
e da mulher, e na fraternidade universal entre todos, ligados ou não por laços
de sangue.
No entanto, apesar das
profundas modificações no campo legislativo, apesar da revolução nos costumes e
modo de viver, apesar do notável entusiasmo com que largas camadas populares se
empenharam nestas transformações sociais, a experiência soviética fracassou.
Foram responsáveis por este
fracasso a inevitável desordem provocada pela revolução e pela guerra, a
extrema penúria generalizada, o desemprego, atingindo sobretudo as mulheres,
durante a NEP, e o facto de o Estado ter que concentrar esforços noutras
direcções, bem mais prementes.
Mas havia ainda a pesada
herança ideológica do antigo regime, que marcava todas as consciências,
incluindo a vanguarda. As ideias erradas, o atraso nos costumes, um regime
patriarcal muito enraizado, sobretudo nos campos, conjugados com a quase total
ausência de meios materiais, punham em risco a possibilidade de levar a bom
êxito a tarefa da extinção da base económica da família, que devia começar pela
emancipação da mulher.
A liberdade sexual foi
exercida com brutalidade, dum modo irresponsável, e sobretudo em benefício dos
homens. A grande massa das mulheres, condicionada por séculos de opressão, por
ignorância ou terror de assumir os seus direitos, não estava preparada para a
situação (83,4 % das mulheres eram analfabetas). Os homens resistiam também a
perder os seus privilégios ancestrais. Deu-se então um fenómeno muito curioso:
durante anos, toda a gente defendia e discutia acesamente a igualdade sexual, e
falava da “nova ordem da vida pessoal e cultural”, da chamada “Novij Byt”, mas
na realidade não a punha em prática. Os 40 milhões de famílias constituídas não
estavam preparadas para esta nova ordem, e o Partido também não.
Externamente, na vida real,
a situação familiar transformou-se de modo radical, mas interiormente tudo
ficava mais ou menos na mesma. No lugar da família tradicional ia-se criando um
outro tipo de organização colectiva socialista (na fábrica, na escola, nas
cooperativas e nos kolkozes) em que as relações sociais entravam em
concorrência com as relações familiares, mas o velho era sempre mais forte que
o novo, e as inibições da ligação familiar, a todo o momento presentes,
entravavam o processo colectivista.
Teria sido necessário que,
através de campanhas de educação, se criasse entre as massas, sobretudo
femininas, um sistema de conceitos novos positivos, que combatessem e
substituíssem a antiga mentalidade patriarcal. O novo Estado não esteve à
altura de tal tarefa.
Assumindo corajosamente as
consequências sociais da sua missão de transformação da família, com todo o
carácter experimental, revolucionário e inovador que tais medidas envolveram,
não foi no entanto capaz de lhes dar o substracto ideológico necessário.
A teoria marxista, ao
postular que a família como instituição iria inevitavelmente desaparecer, não
tinha tido até então ocasião prática para concluir também que seria necessária
uma profunda campanha de consciencialização que levasse às massas as bases
ideológicas para uma nova atitude de vida. Talvez por isso os bolcheviques
tenham subestimado ingenuamente a força histórica e psicológica do sistema
patriarcal. Eles tiveram a percepção política necessária para dar base material
ao desmoronamento da família. Mas não avaliaram na sua devida extensão um
aspecto parcial e secundário da luta de classes que influi sobre o resultado
final: a harmonização entre os sexos necessita de um grande esforço ideológico
complementar às transformações materiais.
Hoje e à distância, pode-se
concluir que o projecto não foi levado até ao fim por incapacidade do Partido.
Como vanguarda, ele deveria ter desencadeado uma batalha de tomada de
consciência acima do nível geral das massas. Porque não o fez, não resolveu a
contradição. Deixou-se ele próprio penetrar por essa consciência geral mais
atrasada, que acabou por o submergir.
A base social tinha sido
modificada, as instituições também, mas as relações humanas, acompanhando
atrasadas essas transformações, não tinham no entanto ido tão longe que
pudessem, por sua vez, actuar, influenciando a economia e a sociedade num
sentido positivo que permitisse saltos de qualidade. Antes pelo contrário,
entravavam esse progresso.
A LUTA ENTRE ESCOLAS
CIENTÍFICAS
la-se consolidando entre os
dirigentes um núcleo de resistência a alguns aspectos da mudança social. Não
será certamente estranha ao facto a circunstância de nos anos 20 apenas 10 %
dos militantes do Partido serem mulheres. O mesmo se passava em outros órgãos
de direcção. Começa-se a falar do “caos sexual”, defende-se o conceito de que a
sexualidade é incompatível com a entrega às tarefas sociais.
Em 1922, o Comissariado
para a Educação, do qual dependia o lar de crianças dirigido por Vera Schmidt
que já referimos atrás, ordena o seu encerramento, alegando falta de verba.
Desde a sua fundação, tinha havido uma campanha surda contra os métodos
utilizados, e pode-se presumir que alguns pedagogos tivessem influenciado essa
decisão. Na altura em que o despacho de encerramento estava para ser publicado,
esteve de visita a Moscovo um representante da Associação de Mineiros Alemães
“Union”, que propôs que o lar fosse subvencionado pela Liga dos Mineiros
alemães e russos, o que aconteceu. Mas depois de várias comissões de inquérito,
e por falta de subsídios oficiais, acabou por ser encerrada ainda em 1922. Mas
a razão era outra: aos elementos mais conservadores não agradava a teoria da
afirmação sexual da criança, e as consequentes práticas, que excluíam, por
exemplo, qualquer punição contra manifestações instintivas da sexualidade
infantil.
Começam a impor-se outro
tipo de ideias: Zalkind [7] desenvolveu a partir de 1923 a teoria da
“sublimação revolucionária” e da “conservação da energia”, afirmando que a
sexualidade retira energia ao esforço socialista, à revolução e ao
proletariado, e por isso deve ser contida e sublimada.
Essa luta entre duas
concepções diferentes também é patente nas ciências médicas da altura. Numa
obra publicada na época (A tragédia biológica da mulher) o médico
Nemilov analisa a menstruação, a gravidez e o parto como “doenças biológicas” e
defende a teoria de que, por maior que seja o progresso social e político, a
mulher estará sempre subjugada à fatalidade das leis da natureza, que fizeram
dela um ser predestinado a padecer dessas “doenças” dolorosas que a diminuem e
a inferiorizam.
Os fracassos e omissões da
política soviética em relação aos assuntos decorrentes da desagregação da
família foram retirando terreno à acção de feministas como Kollontai e Wolffson
[8], e abrindo campo às tendências conservadoras e moralistas.
Esta luta entre escolas
científicas é apenas um aspecto da luta mais geral que se travava dentro do
Partido e na sociedade. Acabou por prevalecer uma linha que, na prática, foi a
pouco e pouco anulando o conteúdo revolucionário das transformações operadas
com a Revolução de 1917, e finalmente as reduziu a uma expressão grotesca, como
adiante veremos.
O SEGUNDO CÓDIGO DA
FAMÍLIA
No grande debate do Soviete
Supremo que precedeu a promulgação do segundo Código da Família, em 1926,
discutiu-se longamente sobre se a união em regime matrimonial não registada
deveria ter o mesmo valor, à face da lei, que o casamento registado. Era entre
os camponeses que se verificava a maior resistência contra os casamentos não
registados, e era justamente para combater a prática dos casamentos religiosos
no campo (que não eram reconhecidos por lei, mas também não eram proibidos) que
o governo soviético queria atribuir valor jurídico ao casamento de facto (não
registado).
Mas entre os dirigentes e
ideólogos do Partido havia divergências. Travava-se uma luta surda em que, em
última análise, o que estava em jogo era a política até então seguida.
Finalmente, depois de
muitas discussões, a 1 de Janeiro de 1927 o novo código declarava legais todas
as uniões em regime matrimonial, registadas ou não. O divórcio continuava livre,
e o aborto livre e gratuito. Mas o que ressaltou do debate, apesar de não se
terem tomado medidas restritivas, é que os representantes dos sovietes estavam
preocupados em preservar a “moral” e acabar com o “caos social”. Por essa
razão, o Congresso não quis pôr em pé de igualdade as ligações passageiras e os
casamentos de facto.
Introduziram-se pequenas
diferenças de tratamento legal em relação às três formas de união matrimonial
possíveis (registada, não registada ou passageira), que apontavam inequivocamente
para o desejo de consolidar o casamento como instituição.
O largo período de debate
que foi necessário está em desproporção com as pequenas alterações que sofreu o
código. Isto indica-nos que se estava num impasse os sectores mais
conservadores desejavam medidas estabilizadoras e “moralizantes”. Os sectores
mais avançados opunham- lhes resistência. O resultado final foi de compromisso,
mas a luta ia prosseguir.
1932-1944, A CONTRA
REVOLUÇÃO
O Congresso de Kiev em 1932
é o passo decisivo para a “contra-revolução sexual”: o aborto é condenado, ou
com argumentos puramente profiláticos (Dr. Kirilov: “Consideramos a
interrupção da primeira gravidez como especialmente perigosa no sentido da
esterilidade subsequente da mulher”) [9] ou demográficos (Prof. Stroganov: “O
aborto aparece como meio de massas para a destruição da descendência”. [9]
— apesar de o índice de natalidade ter aumentado drasticamente desde a
revolução) ou moralistas (Prof. Stroganov: “As mulheres dantes tinham
vergonha do aborto, mas agora começam a considerá-lo como um direito legal”)
[9].
Deixava de se fazer
distinção entre sexualidade e procriação, e condenava-se no fundo o próprio
acto sexual livre a pretexto das mais variadas argumentações, impondo às
mulheres a maternidade, desejada ou não, como um dever social. Mas o congresso
teve as suas contradições e os seus opositores. Foi esse o caso de Zelinsky,
que disse:
(…) É difícil acreditar
na honestidade social daqueles oradores que, de toga abotoada até ao último
botão, afastando-se da realidade da vida e dos factos, descaradamente despejam
aqui diante de nós verdades abstractas sobre o aborto. É como se aqui imperasse
uma cegueira evidente, uma miopia ou hipocrisia social. Essa gente não vê, ou
não quer ver, a verdadeira situação, as condições socioeconómicas e
psicológicas das massas, em que ocorre a epidemia de abortos. As declarações
sobre o aborto contêm mais preconceitos moralizantes do que imparcialidade e
objectividade. Em torno desta questão contou-se uma porção de histórias de
espantar. Fomos atemorizados com tudo: com a infecção e perfuração do útero,
com abalos do sistema nervoso, com o declínio da natalidade, até com a extinção
do instinto materno e com a degenerescência da nação. (…)
A família, com a sua
pouca resistência e extraordinária brevidade de vida, não garante às mulheres
as condições necessárias para educarem os filhos. A pensão de alimentos nem
sempre atinge o seu objectivo. O indivíduo obrigado a pagá-la, mas sem meios
para isso, tem mais interesse teórico para o jurista do que prático para a
mulher. Os preservativos são de pouca confiança. O direito de maternidade livre
nem sempre é realizável, pois uma boa parte das mulheres pertence às
desempregadas, enquanto as novas teorias “científicas” abriram caminho para
restabelecer a repressão sobre a sexualidade da mulher. Com 40 a 50 rublos
mensais de salário estão em condições de fazer uso desse direito. (…)
Um dos oradores,
assustado, exclamou aqui: ‘Bastam a receita do médico e o desejo da mulher, e o
aborto está concluído’. Sim, exactamente assim é que deve ser. Basta o desejo
da mulher, porque o direito de determinar os filhos que quer ter pertence à mulher
e a mais ninguém. Nenhum de nós, homens, suportaria que a questão do seu
casamento fosse resolvida perante qualquer comissão, que o casaria ou não, de
acordo com os seus conceitos sociais. Por isso também não devemos impedir a
mulher de dispor de si mesma e de decidir por si só duma questão essencial da
sua vida. A mulher tem direito à vida sexual e quer realizá-la tão livremente
como o homem, e deve ter essa possibilidade, e com a mesma normalidade, para
preservar a sua integridade biológica. (…)”. [10]
Talvez devido a opiniões
maioritárias da mesma índole o congresso, apesar de condenar o aborto, não
adoptou medidas conducentes a proibições legais.
No entanto, a campanha foi
subindo de tom ao longo dos anos. É a partir desta data que se pode detectar
uma atitude oficial, definitivamente assumida, de afastamento em relação às
concepções originais dos bolcheviques de 1917. A pouco e pouco, instalou-se em
toda a sociedade, por iniciativa do próprio Partido, uma perspectiva bem
diferente. Este fenómeno indicava o interesse do poder político na reabilitação
da família nuclear, que acabou por se consumar nos anos 30. Em função deste
projecto, fez-se silêncio absoluto sobre as várias servidões da mulher, e
resumiu-se o problema da sua emancipação a um único factor: a integração nas
tarefas produtivas, que passou a ser apontada como condição única dessa
emancipação.
SINTOMAS ALARMANTES
Em 1932, foram suprimidas
as comunas de jovens, criadas originalmente como forma nova de vida colectiva
fora da família e antes consideradas como “a forma mais elevada da coexistência
humana”. O escritor Mehnert diz nessa altura o seguinte, acerca desta medida:
“Confessa-se abertamente
que tem pouco sentido realizar já agora, em pequenas ilhas, o último estágio do
socialismo, o comunismo, enquanto o pais inteiro ainda se encontra na fase de
liquidação da NEP, nos primeiros passos do socialismo. A criação de comunas,
apesar do grande empenho com que era feita, foi mais uma medida de emergência.
Hoje já não há necessidade delas”. [11]
Entretanto, o comissário da
Saúde Pública Semachko recebe com estas palavras os estudantes universitários
no início do ano lectivo:
“Camaradas, viestes para
as universidades e para os institutos técnicos para prosseguir os vossos
estudos. Este é o principal objectivo da vossa vida. E, visto que todos os
vossos impulsos, todas as vossas atitudes, se encontram subordinados a esta
finalidade, visto que deveis privar-vos de muitos prazeres que poderiam
interferir com o vosso objectivo essencial, que é estudar para colaborar
futuramente na reconstrução do Estado, deveis igualmente subordinar a esta
finalidade todos os outros aspectos da vossa existência. O Estado é ainda muito
pobre para assegurar a vossa manutenção e a educação das crianças. Por
conseguinte, aqui fica o nosso conselho: Abstinência!”. [12]
Em Março de 1934, quinze
anos depois da despenalização da homossexualidade por decreto de Lenine, são
instituídas penas que iam de três a oito anos de prisão, com campanhas de
propaganda na imprensa, e repressão em massa em Moscovo, Leninegrado, Cracóvia
e Odessa.
Neste ano foram também
suprimidas as senhas de racionamento alimentar, e os operários mais bem pagos
voltaram à mesa familiar.
Nos jornais, médicos,
professores e cientistas publicavam artigos alertando contra os grandes
prejuízos que o aborto causava ao organismo. Um editorial do Pravda
afirmava que um mau pai de família não podia ser um bom cidadão soviético e “no
país dos sovietes, a família é uma coisa importante e séria”.
Ainda nesse ano, o governo
publica uma portaria sobre “a organização da luta contra o banditismo das
crianças na rua”, atribuindo essa tarefa aos órgãos da milícia, que ficam
autorizados a multar os pais por distúrbios e banditismo das crianças. Se os
pais não zelarem “pelo comportamento adequado dos filhos”, estes devem ser
instalados em lares a expensas dos pais. Os comissariados do povo para a
educação das repúblicas da União Soviética devem abrigar as crianças, sem
protesto, nas respectivas instituições. O número de crianças recebidas nos
jardins de infância tinha subido, de 1930 a 1935, de 370.000 para 1.181.000,
mas nem por isso satisfaziam as necessidades ínfimas das famílias soviéticas,
para quem a guarda daquelas era um problema sério.
Nesta primeira fase da
campanha pela reconstituição da família, observa-se uma ofensiva sobretudo
ideológica, que produz alguns efeitos práticos. Mas acima de tudo, ela aplana o
caminho para a reformulação integral da política do Estado face à família e à
mulher.
Reconstituía-se, ao arrepio
de tudo quanto a Revolução de Outubro inovara, a velha imagem da vida familiar
responsável, dirigida por um chefe. Semeava-se o medo e a repugnância pelas
concepções do processo inicial da revolução, a coberto de velhos valores morais
idealistas, que eram associados abusivamente à noção de socialismo.
Nesta viragem ideológica
devemos ver a correspondência com uma nova situação económica e política, em
que pesou sobremaneira a consagração na prática do primado da técnica e o
ascenso dos quadros no aparelho de produção e no Partido. Simultaneamente com o
esforço de industrialização e colectivização, iam-se constituindo sectores
específicos com interesses próprios-, cuja preponderância era cada vez maior,
mas cujo futuro ascenso como nova classe carecia de uma base de sustentação
ideológica e material sólida: a família tradicional.
O TERCEIRO CÓDIGO DA
FAMÍLIA
O novo código da família de
1936 proibiu o aborto nos casos de primeira gravidez, e a lei concedia prémios
às mulheres que tivessem seis filhos ou mais. Sobre a nova legislação disse na
altura o Pravda em editorial:
“Quando falamos do
reforço da família soviética, falamos precisamente da luta contra os resquícios
de uma atitude burguesa perante o casamento, as mulheres e as crianças. O
chamado ‘amor livre ‘ e toda a vida sexual desordenada são tipicamente
burgueses e nada têm a ver com os princípios socialistas, nem com a ética e o
comportamento do cidadão soviético. (…)
Uma mulher sem filhos
merece a nossa piedade, pois não conhece a verdadeira alegria de viver. As
mulheres soviéticas, cidadãs florescentes do mais livre pais do mundo, conhecem
a benção da maternidade. Devemos salvaguardar a nossa familia e educar e
treinar os sãos heróis soviéticos!”. [13]
Neste mesmo código, o
divórcio continua livre, mas com algumas restrições, e passa a ser punido com
pena de prisão o não pagamento da pensão de alimentos. Os órfãos e crianças
abandonadas passam a ser confiados a particulares.
Entretanto, Svetlov
afirmava que o Estado, “provisoriamente na incapacidade de assumir as funções
da família, era obrigado a conservá-la”. A união sexual devia ser “em princípio
fecunda e durar toda a vida” Mais uma vez, sexo, família e procriação eram
metidos no mesmo saco, como se se tratasse de entidades indissociáveis, e não
pudessem existir sem conjugação entre si.
Em 1937, Makarenko [14]
fala da “nova família soviética” como de um meio de socialização orientado pelo
Estado: “Ao delegar uma certa quantidade de autoridade social, o Estado
soviético exige em troca uma educação correcta dos seus futuros cidadãos”. [15]
Segundo ele, da educação
familiar, tanto como da escolar, dependem “o valor dos cidadãos, a
prosperidade da nação e a felicidade dos homens”. [15]
Voltavam a vigorar a
disciplina e os métodos educativos tradicionais, era o retorno ao poder
paternal e à família autoritária, como resposta à incapacidade do Estado de
desempenhar as suas tarefas colectivistas e de socialização. A colectivização
da educação das crianças, que os bolcheviques tinham encarado como um processo
fundamental da sociedade socialista, foi abandonada como princípio orientador.
REFORMAS NO ENSINO
Esta valorização social que
o Estado fazia da função da família teve os seus reflexos na política
educacional.
Até então, tinha estado
consignado na Constituição o ensino gratuito, mesmo o universitário. Um decreto
de Outubro de 1940 passa a restringir este direito, e só a escola obrigatória
continua gratuita. O argumento aduzido era o de que, uma vez que os
trabalhadores usufruíam agora de um melhor nível de vida, e que o equipamento
das escolas médias e superiores representava um pesado encargo para o Estado, era
preciso que as famílias suportassem uma parte desses custos.
Mais tarde, em Julho de
1943, é abolida por decreto a educação mista no ensino secundário. Os
dirigentes soviéticos justificavam assim esta medida:
“A medida foi tomada
para que a escola pudesse adaptar-se. tanto quanto necessário, às
características especiais dos rapazes e das raparigas. O Estado soviético, hoje
confronta-se com problemas importantes e, em primeiro lugar, o fortalecimento
da primeira célula social, a família, na base da completa igualdade dos dois
chefes de família, o pai e a mãe. Mas com uma divisão bem clara das tarefas de
cada um. É preciso, por consequência, um regime escolar que eduque os jovens
para serem futuros pais e corajosos combatentes pela pátria, e as raparigas para
serem mães conscientes, educadoras de uma geração nova”. [16]
E ainda:
“Na educação mista, nem
as particularidades físicas dos rapazes e das raparigas, nem o desenvolvimento
das suas vocações especificas, podem receber uma atenção particular. É preciso
introduzir nas escolas de raparigas temas suplementares como a pedagogia, os
trabalhos de costura, os cursos de trabalho doméstico.” [16]
E ainda:
“O humanismo socialista
deve ter em conta a sensibilidade da mulher. É preciso alimentar o seu gosto
pelas coisas belas. Pelas flores, pelos vestidos elegantes, pelos ornamentos.” [16]
Nestas considerações já
está claramente expressa a desigualdade “natural” entre os sexos e o papel da
família nuclear como célula base da sociedade. Estes conceitos eram erigidos como
princípios a inculcar às crianças nos bancos das escolas. Preparavam a nova
geração para aceitar como facto indesmentível e natural uma ordem social que
lhes era apresentada como estando em harmonia com as suas tarefas de cidadãos
socialistas.
O QUARTO CÓDIGO DA
FAMÍLIA
Em 1944 é publicado um novo
código da família: os pedidos de divórcio deixam de poder ser apresentados às
repartições de registo civil e passam a transitar pelo aparelho de justiça. A
tentativa de reconciliação pode ser promovida por dois tribunais de instância,
e o pedido de divórcio pode ser recusado sob o montante das custas judiciais.
Paralelamente, encoraja-se o nascimento de um novo cerimonial do casamento.
A ilegitimidade dos filhos
é novamente consagrada na lei (só vindo a ser abolida em 1964) e só são
reconhecidos como válidos os casamentos registados. As mães solteiras recebem
pensões do Estado, proporcionais ao número de filhos, mas deixam de ter o
direito de exigir o reconhecimento da paternidade ou pensão de alimentos
(revogado em 1968).
O aborto legal é abolido
(só virá a ser restabelecido em 1954) e é instituída uma pena de dois anos de
prisão a quem ajudar uma mulher a abortar.
Entretanto, Svetlov
exultava pelo facto de “a maternidade se ter transformado numa alegria”. Foram organizadas
campanhas para premiar as mães prolíferas: as que tivessem sete filhos ou mais
recebiam títulos honoríficos e condecorações (Mãe Heróica, Ordem Maternal ou
Medalha da Maternidade).
O Izvestia, pela mão
de J. Andreiev, comenta na altura:
“A nossa sociedade, sem
deixar de defender os interesses da criança, não encoraja as ligações
ocasionais nem a maneira dissoluta de viver. A moral e o direito protegem a
família, consolidando-a e encorajando-a”. [17]
E ainda:
“Para que este
acontecimento capital da nossa vida (o casamento) se revista de um carácter
simultaneamente memorável e oficial, o texto da lei prevê uma regra: o
casamento deve ser uma cerimónia solene”. [17]
CONCLUSÃO
Ao analisarmos os
retrocessos da política do Estado soviético em relação ao programa original dos
bolcheviques, que acabou por ser totalmente posto de parte, não podemos deixar
de relacionar este fenómeno com a situação objectiva: a ameaça de guerra, a
necessidade de estabilização social depois de um período de «desorganização, a
preparação de condições de defesa militar, e a subordinação de todos os
interesses, individuais ou não, a este imperativo. O Estado canalizava todas as
energias e recursos neste sentido, e por isso mesmo tinha de remeter para a
família as funções que anteriormente lhe retirara. Era o pragmatismo realista
imposto pela ameaça de guerra, a contrapor-se à prossecução dos ideais
libertadores dos primeiros anos da revolução. Era o constrangimento que o
capitalismo agressor e fascista impunha ao desenvolvimento socialista a exercer
poderosa pressão sobre os factores internos.
Mas era também, e
sobretudo, mais um passo atrás que encontrava terreno ideológico propício nas
estruturas políticas e sociais soviéticas, e que já vinha de trás: os sectores
mais conservadores do Partido tinham vindo gradualmente a impor a sua vontade
ao longo dum processo de desencanto e desgaste revolucionário, deturpando
grosseiramente o pensamento marxista, apoiando-se nos sentimentos e atitudes
mais atrasados das massas, e sobrevalorizando os aspectos mais negativos das
transformações sociais.
A situação objectiva jogava
a favor dessas tendências, e possibilitava-lhes o avanço, dava-lhes campo para
se tornarem dominantes. A conjugação oportuna desses factores objectivos e
subjectivos determinou a perda irrecuperável das conquistas que a Revolução de
Outubro trouxe à causa da emancipação da mulher, e a consequente extinção
progressiva da família.
A partir dos anos 30, e até
ao fim da guerra, consumou-se aquilo a que se pode chamar a “contra-revolução
sexual”, num processo que, aberrantemente, foi promovido e consentido em nome
da edificação do socialismo.
As grandes prejudicadas
foram, como é óbvio, as mulheres operárias e camponesas. E no entanto, nunca
elas tinham participado tanto como nessa altura no esforço produtivo: entre
1932 e 1937, 82% dos novos operários que ingressaram nas tarefas de edificação
previstas nos planos quinquenais eram mulheres. Entre 1941 e 1950, quando a
maior parte dos homens integraram o exército devido à guerra, essa percentagem
subiu para 92%. Em 1945, cinquenta e cinco por cento dos operários e empregados
eram mulheres.
Ainda hoje, e apesar de
tudo, esse esforço das mulheres -não obstante o seu atraso e ignorância- se
impõe como uma prova de heroicidade. Mas em que condições é que as mulheres se
prestaram abnegadamente à integração na vida social e económica? Assumindo
plenamente as tarefas produtivas e, além disso, todas as outras: os homens
estavam na guerra ou preparavam-se para ela, o Estado não podia atender à
socialização das funções da família pelas mesmas razões. Então era preciso que,
além de produzirem, as mulheres tratassem das tarefas domésticas, educassem os
futuros cidadãos soviéticos, e assegurassem o aumento do índice de natalidade.
O modelo feminino soviético
que nos ficou dessa época é o da mulher produtora, heróica e dedicada à causa
social, mas assumindo integralmente também a sua escravidão secular, como
reprodutora da força de trabalho e da espécie humana. Não tinham sido estas as
expectativas dos revolucionários de Outubro, nem dos operários, soldados e
camponeses -homens e mulheres- que se tinham lançado à construção duma “nova
ordem”.
Poderia ter sido de outro
modo? Talvez não. Enquanto permanecer a ameaça imperialista, enquanto houver
conflitos internacionais, enquanto as nações se hostilizarem umas às outras e
estiverem separadas por fronteiras nacionais, talvez não seja possível
harmonizar a higiene moral e sexual com a política social e demográfica de um
Estado socialista.
Mas uma coisa parece certa:
não é possível justificar as medidas legislativas e a prática seguida pela
União Soviética em relação aos problemas da família, da mulher, da moral e da
educação, a partir dos anos 30, como decorrendo inevitavelmente e apenas das
necessidades criadas pela situação objectiva. Essas medidas excederam em muito
aquilo que seria admissível, mesmo tendo em conta esses outros interesses. É
preciso sobretudo reconhecer que as tendências conservadoras no sentido de se
retomarem velhas concepções e formas de organização social nesta esfera
particular já se vinham esboçando muito antes do período difícil da ameaça
nazi. Esta acabou de criar as condições que faltavam para se intensificar e
consumar definitivamente uma política retrógrada que a pouco e pouco já se
tinha vindo a afirmar. Foi portanto a partir de dentro que a revolução se
desmoronou, sucumbindo mais pelas suas fraquezas do que pela pressão das forças
externas que a procuravam eliminar.
Esta progressiva
reabilitação da família tradicional, com todas as sequelas inerentes, não pode
ser desligada da necessidade de os novos quadros, já nessa altura em ascensão
no aparelho de Estado e no Partido, restabelecerem a velha célula social,
produtora de uma hierarquia de relações e valores desiguais, que servisse de
base de apoio e veículo de transmissão de uma ideologia de autoridade, de que
eles próprios seriam os mais beneficiados.
Demitindo-se o Estado de
grande parte das suas atribuições, que delega discricionariamente na família,
ela reconstitui-se como célula individual e fechada sobre si própria, reproduz
os valores arcaicos e a prática da autoridade do chefe, da submissão dos filhos
aos pais, da mulher ao homem, da repartição desigual do trabalho, dos
rendimentos e das responsabilidades.
Este tipo de família
modelada para servir os interesses próprios daqueles que passaram a controlar o
Estado -os quadros superiores, os funcionários do Partido, os burocratas- acaba
por se impor em toda a sociedade, reproduzindo infinitamente as relações de
desigualdade que a determinaram e preparando o terreno para a degenerescência.
Antologia
As “novas” concepções
soviéticas sobre a família, o papel da mulher, etc., não deixaram de
influenciar os restantes partidos comunistas. Em Outubro de 1935, L’Humanité
publicava um artigo com o título ” Para a Salvação da Família” que, entre
outras coisas, dizia:
“Sabe-se que o número de
nascimentos em França decresce com rapidez alarmante… Os comunistas vêem-se
portanto colocados perante um problema muito sério. O pais que querem
transformar, de acordo com a sua tarefa histórica, o mundo francês que
pretendem encaminhar numa via correcta, corre o risco de ficar mutilado,
atrofiado, populacionalmente empobrecido.
A iniquidade do capitalismo agonizante,
a imoralidade, para a qual dá o exemplo, o egoísmo que desenvolve, a miséria
que cria. a crise que engendra, as doenças sociais que propaga, os abortos
clandestinos que provoca, destroem a família.
Os comunistas querem lutar pela defesa
da família francesa”.
Também Dimitrov, num
discurso pronunciado perante a União Popular das Mulheres Búlgaras em 1948,
revelou as suas preocupações sobre o problema da família (Obras completas,
vol. 6. págs. 21 e 22):
“Na casa mais modesta,
pode-se criar ou contribuir para criar uma atmosfera mais serena, se, por
exemplo, mesmo nessa humilde casita houver mais cuidado com a ordem e a
limpeza, se houver, ainda que mais não seja, uma pequena jarra de flores.
De um modo geral, as nossas mulheres
prestam pouca atenção a estas coisas. Que haja uma jarra de flores, que a
pequena habitação esteja limpa, agradável, que a dona de casa esteja vestida
com simplicidade, mas asseada, não despenteada ou mal vestida como um
espantalho. Até mesmo nas mais difíceis condições, na mais dura situação, com
boa vontade e cuidado da sua própria pessoa, a mulher pode conseguir muito
neste domínio, criar uma atmosfera amigável, uma atmosfera de segurança moral,
de modo que o trabalho de ambos os cônjuges avance. (…)
A mulher continua a ser um factor
importante no seio da família. É sobretudo ela que cria a atmosfera -boa ou má-
no seio da família. Um homem com uma mulher dedicada, progride, enquanto que um
homem com uma mulher má recua, falha. O contrário também é verdade. Mas a
primeira constatação aplica-se sobretudo em casa, no lar, no ambiente familiar
e com as crianças”.
Seria possível encontrar
outros exemplos deste tipo de propaganda na literatura da época. Estes dois, no
entanto, bastam para termos uma ideia de como em situações bem diferentes das
da União Soviética, a política vigente nesse país a respeito da família e da
mulher serviu de suporte e alibi para atitudes extremamente retrógradas como as
que transparecem nestas afirmações, a primeira veiculada pelo órgão central dum
partido comunista, e a segunda expressa por um dos mais prestigiados comunistas
daquele tempo.
NOTAS
[1 ] Director do Instituto
de Higiene Social de Moscovo. Autor de A Revolução Sexual na União
Soviética.
[2] Marxismo e revolução
sexual, Alexandra Kollontai, Ed. Estampa, pág. 209.
[3] Célebre pelas suas
ideias progressistas acerca da moral sexual, foi a primeira mulher no mundo a
ocupar o posto de ministro, como Comissária do Povo para a Assistência Pública
(em 1917), e de embaixatriz (em 1926) representando o seu país na Noruega e
noutros países. Escreveu vários ensaios, entre eles A nova moral e a classe
operária (1918), O amor na sociedade comunista (1923) e a Autobiografia
de uma mulher emancipada (1926). Nascida em 1872 e bolchevique desde 1915.
Morreu em 1952.
[4] Ver O Segundo Dia da
Criação, Ed. Prometeu. 1946.
[5] Psicanalista moscovita,
autora de Educação na União Soviética, 1924.
[6] Lenine, Obras,
vol. 29, pág. 433.
[7] Membro da Academia de
Ciências e da Associação Psicanalítica Internacional, autor de Algumas
questões da educação sexual dos jovens pioneiros.
[8] Sociólogo. Publicou em
1929 A sociologia do casamento e da família, em que preconizava o
desaparecimento da família.
[9] Citados por Wilhelm
Reich em A Revolução Sexual, Ed. Zahar, págs. 234, 235 e 243.
[10] Citado por Wilhelm
Reich, obra citada, págs. 237 e 238.
[11] Idem, pág. 262.
[12] Citado por Kate
Millet, em Política Sexual, Ed. D. Quixote, pág. 169.
[13] Citado no prefácio de A
mulher no marxismo, Ed. Delfos, págs. 50 e 51.
[14] Makarenko (Anton
Semenovitch), 1888-1939. Pedagogo famoso, especialista na recuperação de jovens
delinquentes.
[15] Escola de Pais,
A. Makarenko, Ed Presença. É interessante notar que em 1928, Makarenko tinha
sido afastado da comuna de jovens que dirigia, e criticado pela sua
incompreensão do que devia ser a iniciativa, por se socorrer de noções
burguesas como dever e honra, e por sobrevalorizar a educação pelo trabalho.
Criticava-se a sua pedagogia como não sendo “soviética”. Em 1935, as instâncias
oficiais reconhecem-lhe valor e passam a aplicar as suas teorias. Em 1937 entra
para o Partido.
[16] Citado por Claudie
Broyelle, em A metade do céu, págs. 161 e 162.
[17] Citado
no prefácio de A mulher no marxismo, págs. 53 e 55.
2 comentários:
"A verdadeira emancipação da mulher, o verdadeiro comunismo, só começam no momento em que se desencadeia a luta das massas (dirigida pelo proletariado, dono do poder) contra essa pequena economia doméstica, através da sua recomposição massiva numa grande economia socialista." Lenine, Obras, vol. 29, pág. 433.
Desculpa mais não achai essa obra, pode me passar os dados bibliográficos da citação 6?
Prezado.
Esta citação que referes encontrei-a em francês na web, em
https://www.marxists.org/francais/lenin/works/1919/06/vil19190628.htm
ela é a seguinte:
La véritable émancipation de la femme, le véritable communisme ne commencent que là et au moment où s'engage une lutte généralisée (dirigée par le prolétariat détenant le pouvoir d'Etat) contre cette petite économie domestique, ou plutôt, sa refonte massive en une grande économie socialiste.
É um trecho com referências sobre a situação da mulher publicado em Moscou na brochura
A grande iniciativa. O heroísmo dos operários da retaguarda. A propósito dos "Sábados comunistas",
28 de Junho de 1919.
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