Manifestação Unite the Right em Charlottesville (EUA), agosto de 2017. |
Os que assim
pensam, entendem o fascismo como um novo movimento, uma terceira força
justaposta ao capitalismo e ao socialismo (e que os domina). Para quem partilha
esta opinião, não só o movimento socialista, mas também o capitalismo teriam
podido, se não fosse o fascismo, continuar a existir, etc. Naturalmente que se
trata de uma afirmação fascista, de uma capitulação perante o fascismo. O
fascismo é uma fase histórica na qual o capitalismo entrou; por consequência,
algo de novo e ao mesmo tempo de velho. Nos países fascistas, a existência do
capitalismo assume a forma do fascismo, e não é possível combater o fascismo
senão enquanto capitalismo, senão enquanto forma mais nua, mais cínica, mais
opressora e mais mentirosa do capitalismo.
Brecht, Cinco dificuldades para escrever a verdade
Em longa intervenção no início de 2014, defendemos
que a crise do imperialismo “globaliza”
o acirramento da luta de classes. Após quase 4 anos, não temos condições de
modificar tal posicionamento geral, tendo em vista as dificuldades estruturais
do sistema imperialista retomar as taxas de lucro e acumulação, de um lado, e
da classe operária e seus aliados em avançar na superação dessa fase superior
do capitalismo, de outro.
Gostaríamos, sim, de trazer à debate um aspecto da
conjuntura de crise que pouco desenvolvemos na ocasião, mas que tem sido
importante objeto de reflexão dos comunistas e militantes, quer seja o processo
de “fascistização” do capitalismo atual. Na ocasião, dissemos:
Do ponto de
vista do proletariado e das demais classes dominadas, a análise concreta dos
fatos da presente conjuntura aponta para tendência de agravamento da crise
geral (econômica, social, política, ideológica, etc.) do imperialismo. Nesse
cenário, a burguesia, seus governos e aparelhos internacionais manterão a
ofensiva em todas as frentes (econômica, ideológica, repressiva) para aumentar
a exploração e piorar as condições de vida do proletariado e das demais classes
dominadas. Para isso, as classes dominantes recorrerão, como já estão
recorrendo, à repressão crescente. Repressão às lutas e às formas de organização
do proletariado e das massas, mediante reforço do seu aparelho repressivo e tendência à fascistização.
Para os EUA e a Europa, especificamente:
Podemos
afirmar, de forma geral, que nas condições concretas, específicas, dos EUA,
contradições como essas no seio da classe dominante estão se expressando na
acentuada instabilidade do seu sistema político, com a (quase) total
incapacidade de acordos entre republicanos e democratas, mesmo sobre temas
básicos ao funcionamento do aparelho de estado capitalista (limites de
endividamento, funcionamento dos órgãos governamentais). Isso tem gerado um
reforço das tendências mais conservadoras em ambos os partidos, particularmente
das mais reacionárias, belicosas e
fascistas, como o chamado Tea Party.
[...]
Na Europa,
talvez de forma ainda mais explícita que nos EUA, ressurge a tendência ao fascismo, inclusive mediante a
constituição de partidos fascistas e/ou nazistas legais dentro da democracia
burguesa, para não falar das suas organizações clandestinas com o apoio cada vez
mais explícito dos aparelhos repressivos do estado.
E por fim afirmamos:
Essa tendência ao fascismo não é apenas consequência
da crise, mas é inerente ao próprio imperialismo, ao período de putrefação e
apodrecimento do capitalismo. O fascismo é a ideologia do imperialismo.
Hoje, apesar das oscilações eleitorais, candidaturas
e grupos de extrema-direita já estão consolidados no cenário políticos de
diversos países. O nacionalismo, o racismo, a xenofobia, o anticomunismo, o
culto à ordem e à violência, dentre outras ideologias reacionárias desse campo,
tem conseguido, não só adentrar na máquina estatal capitalista, mas também
atrair as massas populares que sofrem com a ofensiva burguesa nessa longa crise
ao mesmo tempo que não enxergam alternativas concretas ao imperialismo que rui.
Sendo já um fato relevante da luta de classes a nível
global, cabe a nós compreender melhor suas novas características, agentes, causas
e efeitos, para um combate mais acertado. Entendendo-o sempre como elemento
explicável apenas através da crise imperialista. Para isso, trazemos abaixo um texto do comunista Francisco Martins
Rodrigues de 2002, mas que impressiona pela atualidade.
A tendência intrínseca do imperialismo em tentar
resolver seus limites através da violência e da barbárie, como dizia Lenin, não
deve ser um fator para paralisar aqueles que lutam com a classe operária. Em
vez de recuar ao coro da minguada socialdemocracia por um capitalismo de rosto
humano, nossa reflexão e atuação deve-se voltar para a superação do mesmo e sua
atual fase, pois, como diz Francisco:
Nesta época
de agonia do sistema, a democracia burguesa também agoniza, o fascismo brota
por todos os poros do regime político. A burguesia não pode dispensar uma
sociedade sem entraves à caça ao lucro, “bem ordenada”, de pensamento único,
embrutecida pela alienação e pelo medo – e isto é fascismo.
******
Vem aí
o fascismo?
Francisco
Martins Rodrigues
Há quem monte vigilância para não deixar entrar o
fascismo pela porta e não o veja entrar pela janela…
Áustria, Itália, França, Dinamarca, Holanda… No meio
de interrogações e protestos, a extrema direita europeia vai abrindo caminho
como uma força política que já não pode ser ignorada. Os adeptos da teoria de
que a normal rodagem do sistema democrático é o melhor modo de afastar o perigo
fascista ficam embaraçados perante o apoio popular crescente aos Le Pen e
Haider. Tem que se pôr a pergunta: corre a Europa o risco de ver os
neofascistas no poder?
Há quem alegue que esta nova extrema direita inserida
nas instituições nada tem de comum com o fascismo clássico, e é de facto
difícil ver ditadores em potência nos Le Pen ou Haider. Mas também é
ingenuidade demasiada esperar que eles digam agora tudo o que pretendem. Para
já, precisam de conquistar força eleitoral afastando receios. O seu verdadeiro
rosto e os seus verdadeiros líderes só noutras condições surgirão.
Asseguram outros que não há razões para alarme porque
o voto nessas forças seria apenas um voto de protesto, sinal de saudável
inconformismo de certas franjas da população. Mas isto é esquecer que o
descontentamento desses eleitores tem um sinal muito especial: eles querem um
Estado forte e uma polícia “musculada” que meta na ordem a juventude dissidente
e feche os imigrantes em guetos ou os expulse. Uma boa parte do eleitorado
europeu defende uma política reaccionária.
Naturalmente, esses votantes na extrema direita são
pessoas comuns. São pequenos comerciantes e artesãos enraivecidos contra os
regulamentos de Bruxelas e contra os “vadios” que vivem à custa do rendimento
mínimo; camponeses em desespero devido à concorrência demolidora das
multinacionais; reformados, sensíveis à intoxicação sobre a insegurança;
jovens totalmente despolitizados, que julgam assim exprimir a sua rebeldia
contra o trabalho precário; assalariados, saturados das trampolinices dos
partidos do sistema, operários de regiões industriais sinistradas, triturados
pela engrenagem das “reestruturações” e pelos despedimentos em massa, que
chegaram ao ponto de ver uma última esperança em demagogos reles. Por duro que
pareça, quem recolheu mais votos operários nas últimas eleições presidenciais
francesas foi Le Pen.
E assim como os antigos fascistas cresceram ao
canalizar as frustrações dos sectores populares desorientados para um alvo
preciso (a “conspiração judaico-plutocrática-bolchevista”), também o fascismo
actual cresce apoiado no novo bode expiatório – os imigrantes africanos e
árabes, que “trazem consigo a miséria, a insegurança e, quem sabe, os atentados
terroristas”… A divisão da classe operária entre nacionais e imigrantes,
concorrendo entre si e ignorando-se mutuamente, é hoje, sem dúvida, um imenso
factor de risco que a campanha “antiterrorista” veio acentuar.
Não tenhamos dúvida de que começam a reunir-se na
Europa os ingredientes propícios para um ascenso fascista. Na sua esmagadora
maioria os votantes nos Fortuyn, Haider, Le Pen e Cia. não são adeptos
conscientes do regime fascista. Tal como não o eram os milhões que há 70 anos
elegeram Hitler. Aspiram a um Estado que os proteja da crise e lhes dê ordem e
sossego – e isso conduz ao fascismo.
Mas isto não quer dizer que o perigo fascista se
esteja a materializar pela sua face mais visível, pelos Le Pen e Cia. Ele tem
outra face menos espalhafatosa mas muito mais poderosa. Como acaba de se ver em
França: em “defesa” contra o fascismo, eleger políticos “democratas” cada vez
mais reaccionários, que em nome do “Estado de direito” vão tranquilamente
tomando as mesmas medidas propostas pelos fascistas. Para Aznar, Chirac, Schroder,
a extrema direita é útil porque cria o ambiente de pânico securitário e de
desorientação propício às medidas que eles próprios têm que adoptar. Como
dizia há dois anos o fascista austríaco Haider: “Comparem o meu programa com o
de Tony Blair e vejam como são semelhantes”. Os neofascistas abrem caminho, os
“democratas” levam à prática.
Porque a realidade é que as classes políticas
dirigentes europeias, hoje, seja qual for a sua tendência ou o seu emblema –
liberais, socialistas, cristãos, verdes, ecologistas, “comunistas” -, sempre
que passam pelo governo, cumprem o programa fascizante que lhes cabe como
comissários da grande Europa do Capital: poder irrestrito das multinacionais,
corte nos gastos sociais, desorganização do movimento operário, repressão dos
imigrantes, montagem de um monstruoso sistema de vigilância, bombardeamento
mediático, criminalização dos movimentos dissidentes, participação em
expedições imperialistas.
Nesta época de agonia do sistema, a democracia
burguesa também agoniza, o fascismo brota por todos os poros do regime
político. A burguesia não pode dispensar uma sociedade sem entraves à caça ao
lucro, “bem ordenada”, de pensamento único, embrutecida pela alienação e pelo
medo – e isto é fascismo. Um fascismo diferente do antigo, claro, com armas
nucleares, vigilância electrónica, uma máquina mediática avassaladora, a
corrupção universal – e que por isso mesmo precisa de ser administrado por
aparelhos altamente profissionais.
A grande desvantagem dos Le Pen, Haider, Bossi,
Fortuyn, etc., em comparação com os seus antecessores é pois essa: os homens do
grande capital não estão ainda a apostar neles como forças de governo porque
confiam as tarefas essenciais da fascização da sociedade aos partidos e aos
meios “democráticos”. Aos fascistas é atribuído o papel auxiliar de
catalisadores de correntes reaccionárias. Por isso mesmo não recebem meios
financeiros e apoio policial e mediático para criar milícias armadas e partidos
de massa.
Mas não haja dúvida. Se amanhã, em situação de crise e
de convulsão, os grupos financeiros que governam a Europa resolverem apostar em
governos “fortes”, os tarados folclóricos de cabeça rapada e braço estendido
voltarão a ser uma ameaça mortal. A burguesia chamará ao activo as suas forças
políticas de reserva. Os partidos fascistas de combate surgirão. O terrorismo
na Itália dos anos 70 foi uma boa indicação a esse respeito.
Os apelos à frente comum com os grandes partidos do
sistema para “barrar o caminho ao fascismo” levam-nos directamente para a boca
do lobo. Entre os grandes partidos “democráticos” e os neofascistas há uma
corrente contínua. A luta directa contra os neofascistas tem que ser inscrita
como parte da luta geral contra a “democracia” fascizante do grande capital,
pela expropriação da burguesia, pela democracia dos trabalhadores.
Política Operária nº 85, Maio-Junho 2002
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