quarta-feira, 26 de abril de 2017

James Petras e a capitulação recente das guerrilhas - António Barata




Publicamos em 29/03 o artigo Colômbia, Oriente Médio e Ucrânia. Acordos de Paz ou Rendição Política?, de James Petras, que pode ser acessado aqui
Reproduzimos agora o artigo de António Barata James Petras e a capitulação recente das guerrilhas, com uma pertinente crítica ao texto de Petras, em nossa opinião. Consideramos o artigo de António Barata uma importante contribuição ao tema e recomendamos a leitura aos camaradas e leitores do blog. O original está publicado no blog Bandeira Vermelha e pode ser acessado aqui.

James Petras e a capitulação recente das guerrilhas

António Barata

Em texto recente James Petras faz uma análise contundente aos resultados dos acordos de paz estabelecidos entre as diversas formações de esquerda que resistiram à vaga de abandono da luta armada que se sucedeu ao derrube do regime sandinista, à derrota das guerrilhas salvadorenha e guatemalteca, que varreu as décadas de 80 e 90, não se deixando na altura iludir com a democratização das “ditaduras” nem abater pela implosão do bloco soviético.


Acertadamente constata que “em todo o mundo as negociações e os acordos de paz orquestrados pelo Império tiveram um único objectivo: desarmar, desmobilizar e derrotar os combatentes da resistência e os seus aliados”; que “os acordos de paz’, tal como os conhecemos, servem para rearmar e reagrupar as forças apoiadas pelos EUA face às dificuldades tácticas da luta de guerrilhas. O seu objectivo é dividir a oposição e facilitar a conquista. A retórica de paz utilizada nestas ‘negociações de paz’ significa basicamente ‘desarme unilateral’ dos combatentes da resistência, a entrega dos territórios sob seu controlo e o abandono dos civis que os apoiam”, e que em resultado disso “as organizações e movimentos sociais, e seus seguidores entre o campesinato e os trabalhadores, assim como os activistas dos direitos humanos, acabam sendo alvos a abater pelo exército, esquadrões da morte paramilitares que operam com a conivência com os militares do governo.”

Até aqui, não podia estar mais de acordo (passando ao largo o facto de misturar as guerrilhas sul-americanas, a ETA e a resistência palestina com os grupos separatistas armados que reclamam a separação da Ucrânia – aqui, não estamos perante uma luta anti-imperialista de libertação nacional ou antifascista, mas face a uma guerra entre potências imperais, decorrente do cerco à Rússia pela Alemanha/UE, EUA e NATO, em que os povos da Ucrânia e da Crimeia estão a ser usados como carne para canhão).

MEIA CRÍTICA

Impressiona que, face à clareza com que constata e denuncia o processo de domesticação e aniquilamento das guerrilhas e de corrupção de alguns dos seus dirigentes, James Petras acabe, à laia de conclusão moralizadora, a discorrer sobre o que são acordos de paz justos que, em sua opinião, deveriam basear-se “no desarmamento mútuo; no reconhecimento da autonomia territorial e da autoridade administrativa dos insurgentes sobre as áreas que controlam no que respeita à reforma agrária, aos direitos sobre os recursos naturais que vêm explorando, e ao controlo da ordem pública e militar.” Espanta que não seja capaz de retirar as ilações lógicas das suas próprias constatações e análises, remetendo-se a uma meia crítica, que por o ser, não sai do quadro do reformismo.

Porque só o incomoda o facto das sucessivas capitulações terem sido incondicionais, sem praticamente obterem nada em troca, e não a capitulação em si mesma, em particular no caso das FARC (e também no da ETA) em que o abandono da luta armada não decorre de derrota militar mas de opções ideológicas. É certo que estas organizações foram fortemente golpeadas – a guerrilha colombiana perdeu cerca de metade dos seus combatentes, por deserção e abandono, passando dos 18 mil guerrilheiros para os 10 mil, em pouco mais de 10 anos, e uma boa parte dos seus comandantes foram mortos; a ETA, por seu lado, sofreu muitas prisões, foi por várias vezes decapitada e viu ilegalizadas muitas das estruturas legais de apoio ao movimento de libertação nacional basco. Ao mesmo tempo que eram sujeitas a forte pressão mediática, política e ideológica, em particular por parte dos seus apoiantes cubanos e venezuelanos, no sentido de abandonarem a luta armada, aceitarem a ordem capitalista e o parlamentarismo.

A capitulação das FARC e da ETA é o resultado combinado dessas pressões externas – por exemplo, Chávez, em 2009, aconselhava as FARC a soltar incondicionalmente os prisioneiros de guerra, a abandonar a luta armada e a negociar sob a égide da OEA, porque “a guerra de guerrilhas na América Latina e no Caribe já passou à história”, já só estando a servir de pretexto para o imperialismo americano agredir os países da região considerados “terroristas e protectores do terrorismo”. No mesmo sentido se pronunciou Fidel Castro, no dia 5 de Julho do mesmo ano, no site Cubadebate: “Civis nunca deveriam ser sequestrados, nem militares deveriam ser mantidos como prisioneiros nas condições da selva. Foram factos obviamente cruéis. Nenhum propósito revolucionário justifica isto” – e do avolumar entre os seus militantes e simpatizantes das ideias reformistas que por todo o mundo contaminaram a esquerda comunista e revolucionária.
Por isso, as bandeiras iniciais de reforma agrária, distribuição de terra aos camponeses pobres, expropriação das multinacionais, poder popular, revolução proletária, poder aos operários e camponeses, socialismo, comunismo, subversão e destruição do modo de produção e da ordem capitalista, direito dos povos a decidirem do seu destino, foram progressivamente caindo no esquecimento ou tornadas figuras de retórica, sem qualquer conteúdo. O conceito de ditadura do proletariado esfumou-se e o de socialismo tornou-se uma caricatura, numa palavra vazia, onde cabe tudo e mais alguma coisa, por mais aberrante, da Coreia a Cuba, do Vietname à China, do zapatismo à Venezuela.
Foi a incapacidade para resistir a esta vaga reformista comandada pelos EUA e pela UE, exindo-lhes “responsabilidade”, que os levou à capitulação, tal como levou outras guerrilhas e organizações políticas, nos últimos 30 anos. Ideias reformistas, de contornos social-democratas e liberais, que foram progressivamente ganhando a mente dos guerrilheiros, das organizações políticas e dos simpatizantes que os apoiavam. Tanto as FARC como a ETA estavam em condições de prosseguir a luta armada ou (sendo grandes as dificuldades) suspender as acções militares até se reorganizarem e recuperarem – dificuldades maiores passou o exército popular chefiado por Mao Tsé Tung, quando perdeu 90% dos seus combatentes e empreendeu a ”Longa Marcha”. Perante a adversidade não entregou as armas nem desistiu da revolução: recuou, reagrupou, e acumulou forças para se lançar novamente na luta. Portanto, as razões da capitulação são essencialmente políticas e ideológicas, e não militares.

PODIA SER DE OUTRA MANEIRA?

A perspectiva exposta por James Petras, admitindo a possibilidade de negociações entre iguais, é partilhada por muitos daqueles que resistiram à primeira vaga de capitulações de organizações e partidos comunistas e revolucionários que ocorreu nos anos 80 e 90 do século passado e que, perdidos os “faróis do socialismo” passaram a ver em Cuba e na “revolução bolivariana” alternativas ao capitalismo neoliberal e a confundir luta anti-imperialista com revolução proletária. Temendo as consequências de se lançarem numa crítica às causas que podem explicar as razões porque o “socialismo real” (onde supostamente os trabalhadores estavam no poder) se “evaporou” de uma semana para a outra, tendo a transição do “socialismo” para o capitalismo pleno sido feita com o apoio dos trabalhadores – que não deram quaisquer sinais nem manifestaram qualquer vontade de defender o “seu” poder e, na Polónia, até contribuíram activamente para o derrubar –, teimam em confundir capitalismo de Estado com socialismo e a ignorarem a incómoda questão da repressão estalinista e da constituição de uma nova burguesia gestora da propriedade “colectiva”, deixando o terreno totalmente aberto aos ideólogos da burguesia para denegrirem o comunismo e os que lutam por uma sociedade sem exploração do homem pelo homem. É por temerem que tal avaliação os coloque perante o vazio político e ideológico que se recusam a reavaliar criticamente as orientações que guiaram o movimento comunista desde os anos 30, o estalinismo, as frentes populares, a subalternização e subordinação da lutas das fábricas e nas ruas à disputa parlamentar e ao jogo eleitoral, a política de conciliação e entendimento com os sectores intermédios da burguesia. Por isso não são capazes de ir além das meias críticas às expressões mais acabadas do reformismo, limitando-se a ser a ala radical do reformismo e a tender para a social-democracia.

O que incomoda Petras, Isa Conde e outros que se revêm nesta corrente reformista radical, não é a capitulação, mas a sua forma. Ou seja, que a deposição das armas, a integração e aceitação da ordem burguesa e capitalista esteja a ser feita praticamente a troco de nada, que a rendição seja incondicional, com tão escassas contrapartidas.

Para que os “processos de paz” decorressem entre iguais, teria de ocorrer uma circunstância diferente da actual – haver um impasse na guerra, um equilíbrio entre a guerrilha e o aparelho repressivo da burguesia. Incompreensivelmente James Petras ignora este facto. Os actuais “processos de paz” resultam da derrota política e ideológica das guerrilhas. Por isso eles se fazem nos termos do vencedor. Não perceber esta evidência, é não perceber nada. É estar a falar de uma realidade que não existe. Por isso Petras, apesar das acertadas e assertivas constatações que faz, não consegue explicar o mistério da capitulação incondicional das guerrilhas e a razão pela qual elas aceitam com naturalidade dar tudo e receberem quase nada. Nenhum dos objectivos das guerrilhas – reforma agrária, socialismo, expropriação do grande capital, melhoria das condições de vida das massas populares, libertação da dominação imperialista, soberania, julgamento dos torcionários, etc. – foi alcançado. E se tal aconteceu e volta a acontecer, a explicação não está, como habitualmente, nos “erros”. Está nas opções ideológicas, no abandono do campo dos oprimidos e na aceitação da ordem dos opressores.

Pensar que numa circunstância desta a burguesia aceitava partilhar o poder, é puro cretinismo. Para haver uma partilha de poder, era necessário que essa divisão se verificasse de facto. Situações dessas podem ocorrer nas guerras de classes, mas por momentos muito breves. Duram o tempo que durar o impasse. Aconteceram na Europa durante as revoluções burguesas (bonapartismo) e a revolução Russa de 1917, no espaço temporal que mediou entre o derrube do czar e a tomada de poder pelos bolcheviques (Governo Provisório vs. Sovietes) e, em certa medida, em Portugal, durante o chamado “Verão Quente” de 1975. A dualidade de poder, isto é, a coexistência de dois centros de poder dentro de um mesmo Estado, não mais significa que uma pausa nas formas superiores de luta. Não é uma trégua nem o fim da luta de classes, que prossegue em sob formas inferiores, essencialmente políticas. São um recuo táctico das partes, destinado a reorganizar-se e acumular forças, até que uma delas se sinta em condições de subjugar a outra pela força, arrebatando o poder para si.

Só num contexto destes teria sentido Petras defender que “os acordos de paz deveriam ser o primeiro passo de uma agenda política a implementar sob controlo do exército rebelde”. Tal implicava uma correlação de forças totalmente diferente, capaz de impor à burguesia a partilha do poder com a guerrilha, coisa que é domínio da fantasia. Não guerra de classes não há boas intenções, por mais piedosas. É uma luta de vida ou morte.

É por isso que a rendição das FARC e da ETA representam, mais que uma derrota política, a sua passagem definitiva para o campo do reformismo, de tintas mais ou menos radicais e social-democratas. Foi por perderem as referências revolucionárias e anticapitalistas, por desistir dos seus programas, que aceitaram entregar as armas e abandonar a luta nas condições em que o fizeram – nenhuma reforma agrária acontecerá na Colômbia e os bascos não ficaram mais independentes. As burguesias colombiana e espanhola continuam intocadas no seu poder e querer e os torcionários e torturadores ao serviço dos vencedores não vão sofrer qualquer beliscadura. As desigualdades sociais e a exploração do trabalho pelo capital continuam como antes, agora em condições melhores, com a sociedade mais “pacificada”. Quanto aos vencidos, vão continuar a ser perseguidos, a estar sob vigilância, confinados e com os movimentos controlados, a ter de enfrentar os tribunais sob acusações de violação dos direitos humanos de terrorismo, a apodrecer nas prisões. E não será o facto de alguns deles virem a “progredirem na vida” que as coisas deixam de ser como são.

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