segunda-feira, 10 de abril de 2017

Uma Intervenção Sobre a Conjuntura Mundial da Crise do Imperialismo

http://www.demystification.fr
O Blog Cem Flores divulga importante intervenção sobre a conjuntura mundial da crise do imperialismo, publicada por Tom Thomas em dezembro de 2015. A tradução do original em francês é da camarada Ana Barradas. Estamos convictos que, passado um ano e meio da redação desse documento, sua atualidade permanece intacta. Daí a importância da leitura e do debate comunista entre camaradas e leitores deste Blog.

A crise do imperialismo, aberta em 2007/08, traz uma novidade histórica de acordo com Tom Thomas: o «esgotamento da quantidade de trabalho social empregue na produção de mais-valia», devido ao elevadíssimo nível de acumulação de capital fixo, de composição orgânica do capital, alcançado pelo capitalismo. Por essa razão, o processo de acumulação de capital não consegue mais gerar ganhos de produtividade, mais-valia relativa, estagnando e/ou fazendo declinar a taxa de lucro. A acumulação produtiva, portanto, se interrompe e, com ela, os investimentos e o crescimento econômico. Daí a crise e a estagnação que vivemos já faz uma década.

Tom Thomas mostra que, apesar disso, o capital permanece com sua necessidade imperiosa, intrínseca, de valorizar-se. Aponta, então, duas tentativas de saída. Uma, a geração desenfreada de capital fictício – desde emissões monetárias de trilhões de dólares dos bancos centrais até recordes alcançados pelas bolsas de valores. Essa «bolha», que se revela ainda maior que a anterior, gera lucros (igualmente fictícios) sem passar pelo processo produtivo, geração de mais-valia («D–D’»). Parte desses lucros financiam sucessivas rodadas de centralização de capitais, aumentando ainda mais o poder dos monopólios.

A outra saída do capital é voltar-se contra as classes produtoras, buscando aumentar de todas as formas a mais-valia absoluta. Nas palavras do autor, «degradação sistemática da condição proletária». Em trechos que têm fundamental relevância para a luta de classes no Brasil atual, Tom Thomas detalha esse caráter essencial, constitutivo, das mal-chamadas «políticas de austeridade» e «reformas estruturais».


Esses movimentos do capital geram como consequências necessárias o aumento da concorrência entre capitais, uma maior exploração dos povos dos países dominados e conflitos nos quais se misturam guerras civis e imperialistas (das quais o caso mais notório hoje seja a Síria).

Para Tom Thomas, essa situação de «concorrência exacerbada» implica movimentos para confrontá-la, originando ideologias nacionalistas, protecionistas e xenófobas. Esses movimentos, não obstante consigam atrair parte significativa do operariado e das camadas médias, são movimentos do próprio capital que visam a defesa de frações específicas, a recomposição de sua taxa de lucro e o seu corolário, a exploração da classe operária. A ideologia que os embasa busca justificar ideologicamente, perante os operários, «que aceitem uma degradação profunda das condições de trabalho, a pretexto de que se salvarão sacrificando-se pela ‘sua’ empresa, e ‘a sua’ Nação ainda por cima. Quer dizer que ... aceitem essas políticas ditas ‘de austeridade’, em benefício dos que os exploram e engordam à sua custa».

Essa nova situação do capitalismo também expõe os limites da luta sindical, amplamente dominada pelas correntes reformistas burguesas no seio da classe operária. Para Tom Thomas, «hoje já só podem, quando muito, ser defensivas, ou seja travar momentaneamente a tendência inexorável para a degradação contínua da condição do proletário, e, ademais, também da pequena burguesia».

A única solução, portanto, é travar uma «luta revolucionária classe contra classe» para chegar à «revolução política que proceda à abolição do Estado burguês e permita a instauração de um verdadeiro poder proletário».

Deixemos o próprio autor concluir:  

«Os que hoje querem militar pelo comunismo não serão úteis se não procurarem enriquecer e propagar esse conhecimento concreto das causas a fim de ele poder afirmar-se como conhecimento pelos e para os proletários, como conhecimento das necessidades que se lhes impõem se quiserem deixar de cair no sempre pior, e o conhecimento das possibilidades de dominar o seu próprio destino. Confiando apenas na ‘prática’, afirmando que os proletários nunca se interessarão pela teoria (portanto de facto pela análise concreta), a maior parte desses militantes, infelizmente em muito pequeno número hoje, cruzam os braços. O que equivale a encorajar os proletários a manter-se numa prática cega, sem outro resultado, quando muito, que não seja opor-se mais ou menos às ofensivas do capital, e na pior das hipóteses envolver-se nas vias catastróficas do nacionalismo e do neofascismo. Os partidários da revolução comunista têm portanto por obrigação, se quiserem ser consequentes, unir e organizar as resistências, trabalhar para relacionar todos os diversos efeitos concretos da putrefacção do capitalismo com o que os une, com a causa desta, com a crise nas suas características históricas particulares, e a partir daí poder trabalhar para detectar e estimular nas lutas tudo o que surge, mesmo que ainda sob forma embrionária, como respondendo adequadamente a esta situação, como permitindo aproximar objectivos comuns definidos pelas necessidades e possibilidades que implicam, e assim unir os proletários em proletariado».


SITUAÇÃO EM 2015: ATUALIZAÇÃO E CONFIRMAÇÃO

Tom Thomas*

PREÂMBULO

O texto que se segue acabou de ser escrito em Outubro de 2015, portanto antes das carnificinas parisienses de 13 de Novembro [a]. Porém trata dessa actualidade, e foi por isso que não modifiquei nada quando foi publicado em Dezembro. Trata no sentido em que se propõe dissecar uma situação que essas carnificinas apenas confirmaram. As questões que colocam são de facto: de que chão, de que ventre saem todos esses animais imundos que assolam o mundo contemporâneo, e por que razão o assolam com uma selvajaria e uma amplitude que crescem sem parar? [1] Por toda a parte de facto guerras imperialistas, por toda a parte populações oprimidas, cada vez mais miseráveis, por toda a parte o surgimento de comportamentos e organizações neofascistas, do tipo FN ou Tea Party, ou teofascistas, do tipo Daesh [b] ou sionista (como nos anos 30).

Responder a estas perguntas é compreender que estes factos são manifestações da putrefacção avançada do mundo capitalista contemporâneo (cujas bases específicas este texto recordará), da sua agonia que só chegará ao fim pela abolição do capitalismo através de uma luta revolucionária classe contra classe. Sem compreender a situação do capitalismo contemporâneo, sem compreender, portanto, as raízes da sua crise actual, não se pode compreender por que razão este mundo se afunda numa tal barbárie, em tais catástrofes económicas, ecológicas, militares, políticas, éticas. E isso é inelutável, salvo vitória dessa revolução. Sem compreender a razão fundamental, não se pode evidentemente saber como remediar.

Denunciar os crimes e responsabilidades dos imperialismos, muito bem. Ser contra a união nacional que a burguesia proclama, quer dizer contra o apoio aos seus actos criminosos contra os povos, muito bem. Opor-se aos diferentes fascismos, muito bem. Mas limitar-se a isso seria contentar-se com inimizar os diferentes bárbaros. O que evidentemente nada resolve. O mais importante é agir sobre a causa profunda da putrefacção de que as múltiplas catástrofes e selvajarias contemporâneas são uma manifestação. E para isso, é preciso primeiro actualizá-la, e para esse efeito o pequeno texto que se segue constitui um lembrete e uma confirmação.

RESUMO DA ANÁLISE DA SITUAÇÃO DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

De facto, este breve texto tem como objectivo mostrar que os últimos desenvolvimentos aparentes da crise, em todos os planos, económicos, sociais, políticos, ideológicos confirmam a veracidade dessas causas e características essenciais, assim como a impossibilidade de sairmos dela sem sair do capitalismo, como me foi possível demonstrar [2] graças e com base nos trabalhos de K. Marx. Confirmação magnífica do génio de Marx, poder-se-ia dizer, se não fosse tão catastrófica quanto ao futuro imediato.


Para verificar essa confirmação convém primeiro recordar, muito rapidamente, as principais conclusões dessa análise.

1) Não se trata apenas de uma crise de sobreacumulação de capital/subconsumo das massas tal como o capitalismo já conheceu (nomeadamente nos anos 30), acompanhada de um bloqueamento provisório da valorização do capital (da sua acumulação, do “crescimento”). Mas que esse bloqueamento, ou quase bloqueamento, já não é ultrapassável porque – situação historicamente nova – o capitalismo, ao fim de dois séculos de ganhos de produtividade espectaculares, chegou a uma tal acumulação de capital fixo, de uma maquinaria altamente automatizada, que provocou, de um só golpe, um esgotamento da quantidade de trabalho social empregue na produção de mais-valia (que, como se sabe, é “autómata”, ou seja inerente ao modo de produção capitalista). Por outras palavras, provocou uma evanescência do valor (que é essa quantidade), portanto do capital, seja sob a forma de meios de produção, mercadorias, dinheiro.

Evidentemente, quanto mais o valor enfraquece, mais tende a ser fraca a sua valorização, única base real do crescimento capitalista. Até ao ponto, que justamente essa crise revela ter sido atingido, em que esse crescimento estiola, estagna, pára, para depois se tornar decréscimo (destruição líquida de capital), sem esperança de retoma que não seja fugaz, simples sobressalto nessa tendência geral.

No entanto essa tendência irremediável para a evanescência do valor e para o esgotamento da valorização [3] não é em si mesma suficiente para abolir o capitalismo. De facto a essência do capital é ser uma relação de apropriação específica, material e intelectual, de tal forma que enquanto existir, existe também necessariamente a sua consequência, por mais antagónica dele que se tenha tornado, que é o capital como valor a valorizar-se, tendo de se valorizar a qualquer preço. Exigência absoluta, condição incontornável da reprodução da “sociedade” (capitalista, claro), cujos executantes, todos apelidados por Marx de “os funcionários do capital”, são não apenas privados, mas ainda mais os Estados. Longe de ser natural, “a economia” é histórica e política.

2) Esses funcionários vão portanto agir, com uma determinação, uma violência, um extremismo, tanto maiores quanto a situação do capital é catastrófica, bem como a sua reprodução, e por conseguinte a da sociedade que eles acalentam, que é o seu Éden, se torna cada vez mais problemática. Fá-lo-ão em nome da “realidade”, de facto a das condições de existência dessa sociedade particular. Por exemplo o lucro e a competitividade, como condições e estímulos supostamente indispensáveis da iniciativa, do crescimento e do progresso, são, entre outros argumentos falaciosos, a justificação de todos os golpes que assestam aos proletários. Competitividade, a palavra feita desportiva, dinâmica, mas não é mais que a velha concorrência entre capitais a desempenhar o seu papel de polícia (um factor externo ao processo de produção) que obriga os funcionários do capital à aplicação plena e completa da exigência da valorização máxima (fenómeno interno a esse processo) sob pena de serem eles próprios eliminados ao mesmo tempo que o capital que representam, que personificam. Para o conseguir vão pôr em prática as duas principais categorias de medidas seguintes:

2-1) Tentar suprir o declínio dos ganhos de mais-valia obtidos pelos ganhos da produtividade, agora muito mais lentos, por um aumento dos obtidos por uma degradação sistemática da condição proletária: desemprego total e crónico para muitos, e para os outros, baixa dos salários e prestações sociais, aumento da duração e da intensidade do trabalho, precariedade, flexibilidade, etc. É uma política que, em termos científicos, marxistas, procura suprir o declínio da extracção da mais-valia sob a sua forma relativa, com um reforço da sua extracção sob a sua forma absoluta [4].

2-2) Proceder a uma emissão massiva de créditos quase gratuitos (por outras palavras, criação monetária massiva), para salvar o sistema financeiro, em carácter de urgência depois do crash de 2008, depois regularmente na esperança de que alimentem investimentos e consumo, e também uma inflação susceptível de facilitar o reembolso das dívidas.

3) Todas as tentativas de revigorar o processo de valorização que se esgota processam-se evidentemente no quadro do capitalismo contemporâneo, ou seja mundializado. Um capitalismo de imperialismos já não coloniais (à excepção notável de Israel), como até depois da 2ª guerra mundial [5], mas de colaboração com as burguesias no poder nos países dominados, enquanto as inelutáveis rivalidades entre imperialismos, mais vivas com a crise, são também contraditoriamente algo contrabalançadas pelo facto da dita mundialização exigir também uma ordem mundial (que os EUA têm hoje dificuldade de controlar sozinhos), donde o esboço de um impossível Estado mundial (organismos internacionais tipo ONU, FMI, etc., tentativas de gestão comum de certos problemas mundiais, tipo G20, COP21, etc.).

Quanto mais se desenvolve a crise da valorização, mais as potências imperialistas aumentam a sua pressão sobre os povos dominados. Os mais recalcitrantes são submetidos a bloqueios (Cuba, Irão), a sanções financeiras ruinosas (Argentina, Grécia), e, cada vez mais, a expedições militares massivamente mortíferas (Sérvia, Médio Oriente, África, etc.).

Com a crise, a concorrência já não é apenas a polícia que obriga o funcionário do capital a procurar o lucro máximo. É cada vez mais o militar que tem de matar tudo o que impede ou se opõe a essa exigência: o revoltado, mas também o rival.

4) Essa concorrência acrescida entre capitais gera uma concorrência acrescida entre os assalariados do mundo inteiro (a mundialização a tal obriga) pela venda da sua força de trabalho. Em nome dessa concorrência baptizada competitividade, os funcionários do capital exigem dos trabalhadores que aceitem uma degradação profunda das condições de trabalho, a pretexto de que se salvarão sacrificando-se pela “sua” empresa, e a “sua” Nação ainda por cima. Quer dizer que lhes exigem que rivalizem – mesmo que se combatam – e aceitem essas políticas ditas “de austeridade”, em benefício dos que os exploram e engordam à sua custa. Coisa que muitos ainda aceitam de facto, imaginando salvar-se, antes de se aperceberem que, na melhor das hipóteses, apenas obtêm, além dessa degradação, um breve alívio para alguns no desastre para todos, incluindo eles mesmos, no fim de contas.

Aqui está, muito sucintamente resumido nestes quatro pontos, o estado geral da situação do capitalismo contemporâneo e da ofensiva que ele conduz, em consequência, contra os povos, e particularmente os proletários. Veremos, num texto mais adiante, o que essa situação permite dizer para já quanto à resposta que é possível e necessário dar. E, evidentemente, esta resposta, segundo corresponda ou não a esta situação, às necessidades e possibilidades que implica, constitui o elemento essencial da sua evolução: comunismo (que pode, pela primeira vez na história, tornar-se realidade) ou barbárie (já realizada com frequência, e que está em vias de se realizar de novo, decuplicada, à vista de todos).

Esta resposta constitui, claro, um quinto ponto a acrescentar aos anteriores visto que o nível da luta de classes faz evidentemente parte da situação do capitalismo. É preciso, portanto, recordar aqui um importante facto com ela relacionado que decorre imediatamente da análise da crise acima resumida e confirmada. É o de que as bases materiais da ideologia e das políticas reformistas, ditas “de esquerda”, que até aqui dominaram o movimento proletário, estão para ir por água abaixo. De facto o crescimento do capitalismo moderno, baseado em ganhos de produtividade [6] que durante um tempo permitiram (os chamados “30 gloriosos”), aumentar ao mesmo tempo os lucros, o emprego, e o nível de vida material dos assalariados, está agora bloqueada. Portanto o tipo de lutas proletárias que, antigamente, podiam obter esse tipo de vantagens, que levavam “água ao moinho” dos sindicatos e partidos “de esquerda” para manter influência sobre os proletários, hoje já só podem, quando muito, ser defensivas, ou seja travar momentaneamente a tendência inexorável para a degradação contínua da condição do proletário, e, ademais, também da pequena burguesia.

No entanto a situação ideológica da maioria das massas populares, proletários incluídos, é a de acreditar ainda mais ou menos nessa possibilidade reformista [7]. No ambiente de concorrência acrescida que prevalece, essa possibilidade, se não de melhorar o seu nível de vida, ao menos de travar a sua descida, parece-lhes passar pela necessidade de recusar essa concorrência mortífera. Mas, fortemente empurrados nesse sentido pelos políticos “extremistas”, pensam poder conseguir essa real necessidade através do proteccionismo, o nacionalismo e, finalmente, a xenofobia, e o mito de um Estado que, governado por esses “extremistas”, domaria o capital quando é, na essência, o seu servidor supremo. Pensam, portanto, abolir a concorrência no próprio quadro do capitalismo que é a sua causa, quando ela só pode ser abolida se tiver contra si a associação dos proletários de todos os países contra o capital. Também a oposição entre estes estatistas e os chamados liberais - esses que afirmam, com mais verdade, que o capitalismo não tem outra solução, na situação em que está, que não seja mais suor, sangue e lágrimas, e depois o futuro será melhor - não passa de uma oposição de fancaria.

A ideia de que é possível outra via que pode resultar na abolição de um capitalismo senil que se tornou terrivelmente mortífero baseia-se num facto contemporâneo historicamente novo. É o de que, de uma forma algo escondida mas bem real, residem nas próprias causas objectivas da crise do capitalismo as potencialidades materiais que permitem construir uma sociedade comunista [8] (que nada tem a ver, é preciso repetir, com as sociedades que foram baptizadas como tais, e que, na URSS ou na China apenas tinham dados os primeiros passos nesse sentido, antes de Staline, antes de Deng Tsiao Ping).

Feitos todos estes reparos, podemos passar agora ao objectivo deste documento: mostrar que as análises das causas da crise são totalmente confirmadas pelos factos que se puderam constatar nos últimos tempos, e que, ao ignorá-las, os diversos funcionários do capital só puderam preconizar e administrar remédios que não apenas foram ineficazes, mas, pior ainda, agravaram, e continuam a agravar, o estado do doente.

CONFIRMAÇÕES

De facto, muitos economistas oficiais foram obrigados a verificar, para sua grande desorientação, que não funciona nenhum dos remédios que supostamente poriam fim à crise, embora muito se tenham aplicado, com uma amplitude excepcional e uma brutalidade sem limites. Mas a sua sagacidade detém-se, no caso dos menos cegos, na constatação despeitada de que isso significa que as suas prescrições não iam minimamente às raízes dessa crise. É que, abominando Marx por causa do conteúdo e as consequências revolucionárias da sua obra, eles ignoram ao mesmo tempo, por interesse e ideologia de classe, o que é o capital, o que são as suas contradições, como evoluem em antagonismos, e portanto ignoram o verdadeiro remédio para esta crise: de onde a sua desorientação.

Verifiquemos primeiro sucintamente a realidade da aplicação obstinada dos remédios aplicados antes de vermos os seus resultados.

1) Amplitude excepcional da acumulação das dívidas. Segundo a CNUCED [c] (ONU), o endividamento de todos os actores económicos (Estados, colectividades locais, empresas, famílias) aumentou 57.000 milhares de milhões de dólares de 2007 à 2014 (ou seja + 40%) para atingir um pico de 199.000 milhares de milhões de dólares.  Este será ultrapassado em 2015, visto que a política dos principais Bancos Centrais (FED, BCE, Japão, Inglaterra, etc.) continua a ser inundar os mercados de liquidez. Trata-se, nomeadamente, dos programas chamados “Quantitative Easing” (QE) através dos quais os ditos bancos compram massivamente títulos de Estado [9] (e também, fora dos QE, de empresas). Ou ainda, outra forma de criação monetária massiva, ofereceram aos bancos, e oferecem ainda, créditos quase gratuitos em quantidade quase ilimitada. Tudo isto pode resumir-se em poucas palavras: uma gigantesca emissão monetária.

2) Continuação das ofensivas generalizadas de agravamento da extracção da mais-valia sob a sua forma absoluta. Aqui trata-se de factos sistemáticos, em nome do “rigor”, da “competitividade”, da “mundialização”, dessa “realidade” que é a das leis do capitalismo, ao quais não vale a pena voltar, de tal forma fazem parte da vivência imediata dos proletários, a da degradação cada vez maior do seu quotidiano: baixa dos rendimentos salariais e prestações sociais, aumento da quantidade de trabalho à fornecer (tanto em intensidade quotidiana e anual como com o aumento da idade para a reforma) no caso dos que trabalham, múltiplas medidas ditas de “flexibilidade”, “supressão da rigidez do direito do trabalho” (quando se tem trabalho!), desemprego em massa (parcial e total), etc. “Os vossos sacrifícios de hoje são os nossos lucros de amanhã, e as vossas migalhas ficam para depois do dia-de-são-nunca”.

3) Degradação particularmente brutal da situação dos povos dos países dominados pelas principais potências imperialistas. A concorrência decuplicada pela crise obriga as multinacionais a acentuar as pressões sobre os seus subcontratados nos países de baixos custos salariais para os baixarem ainda mais [10]. Isto ao ponto de provocar mortes em massa anualmente, conhecidas (como, por exemplo, nas quedas de prédios dos subcontratados do têxtil no Bengladesh), ou, na maior parte, silenciados (doenças letais, fomes, poluições, etc.).

A isso acrescente-se que muitos desses países situam-se na cadeia mundializada e segmentada de valorização dos capitais como simples fornecedores de matérias-primas. Com os preços a afundar-se com a crise, é uma pauperização acrescida desses povos que daí decorre, enquanto se exacerbam no seu seio as rivalidades entre diferentes fracções burguesas, apoiando-se com frequência em diferentes comunidades étnicas ou religiosas, para partilhar o que resta do saque da exploração dessas matérias-primas. Rivalidades que, com o agravamento da crise, degeneram em conflitos armados, que exploram, depois de eles próprios, com frequência, os terem estimulado, as diferentes potências imperialistas rivais. Daí certas guerras, mistura de guerras civis e imperialistas, de amplitude e de poder letal cada vez maiores.

Detenhamo-nos neste breve e sucinto panorama dos actos dos funcionários do capital para tentar vencer a crise. E constatemos, de resto como eles, que efectivamente nada resultou: o crescimento (a valorização do capital, a sua acumulação) não registou retoma. Isto no preciso momento em que todos os economistas oficiais se felicitavam por estarem reunidas as condições que tinham declarado serem as da retoma. Por exemplo na Europa ou no Japão: crédito abundante e quase gratuito, moedas fracas facilitando as exportações, preços das matérias-primas, e nomeadamente do petróleo, em baixa. Mais esse excepcional “alinhamento dos planetas”, segundo a sua expressão, não provocou o boom de crescimento que as suas teorias económicas prometiam. Muito pelo contrário. Observemos agora alguns dos resultados a que chegaram esses funcionários.

Comecemos pela emissão monetária massiva. Onde estão, para que serviram os montões de dinheiro emitidos pelos Bancos Centrais?

Não é muito difícil saber: os próprios economistas oficiais sabem visto isso fez parte dos fenómenos aparentes à superfície que são os movimentos e relações das coisas (preços, salários, lucros, taxas de câmbio, relações oferta/procura, etc.) a que se cingem os seus estudos. Esses milhares de milhões foram, via sistema financeiro, para os cofres dos Estados a título de empréstimos para cobrir os défices orçamentais, para os bancos cujos balanços tinham de ser expurgados dos créditos irrecuperáveis, e também para as empresas, sobretudo as maiores, que pediam empréstimos quase gratuitos. Mas aí (como nas mãos dos bancos e dos Estados) não foram transformados em investimentos produtivos, o que era um dos objectivos da emissão monetária. Essencialmente serviram para inchar artificialmente (ou seja, sem que isso correspondesse a um aumento da mais-valia) os rendimentos passados para os accionistas, também aumentados [11] pelo facto de a maior parte da mais-valia obtida não ter sido reconvertida em investimentos (em capital adicional) mas distribuída sob a forma de dividendos. Outro uso desses milhares de milhões, muito apreciado pelos financeiros e detentores de rendas, consistiu em as empresas comprarem as suas próprias acções para as anular, o que aumenta matematicamente o lucro por acção e faz subir, ou trava a descida do seu valor em bolsa, mas evidentemente não alimenta o crescimento (é pelo contrário uma destruição de capital, um desinvestimento). Assim, por exemplo, cerca de 70% dos enormes fluxos de liquidez emitidos pelo FED (banco central norte-americano) serviram para alimentar os dividendos e aquisições de títulos. Mas não são manobras que possam repetir-se por muito tempo.

Uma outra parte desses fluxos mundiais alimenta uma concentração acrescida do capital através de fusões/aquisições que mobilizam dezenas de milhares de milhões de dólares. O que não cria evidentemente nenhuma capacidade de produção suplementar, mas gigas mastodônticas que agravam o carácter oligopolístico do capitalismo mundial e a concentração das riquezas em grupos de indivíduos cada vez mais reduzidos e cada vez mais ricos.
Finalmente, o mais característico de tudo isto, e que inquieta os próprios economistas oficiais, é a degradação massiva e generalizada dos investimentos destinados a aumentar os meios de produção, é essa estagnação da acumulação do capital que essas operações financeiras implicam. Para tomar como exemplo os EUA, a maior potência mundial, em 2014 as 500 primeiras empresas norte-americanas (classificação Standard and Poor’s 500) obtiveram 1000 milhares de milhões de dólares de lucros operacionais, e entregaram 903,6 milhares de milhões de dólares aos seus accionistas sob a forma de dividendos (350,4 milhares de milhões de dólares)  e de compras de acções (553,2 milhares de milhões de dólares). Portanto 90% dos lucros não foram reinvestidos, mas distribuídos. O que prolonga uma tendência que acompanha o agravamento da crise desde há muito (este ratio equivale em média a 85% desde 1998).

Assim os fluxos de liquidez emitidos pelos Bancos Centrais (sem mencionar aqui tráficos ilegais, máfias, corrupções, e outras especulações fraudulentas em constante e espectacular ascenso), têm como resultado a criação de uma nova bolha de capital financeiro fictício, e bastante mais gigantesca que a precedente, que rebentou em 2007. É óbvio que o valor de títulos de dívidas de Estados, assim como o de ações nas bolsas de valores, sustentado por essa imensa criação monetária ex-nihilo e não pela criação de uma real riqueza, não passa de um valor fictício, corresponde apenas a capital financeiro fictício.

Há ocasiões em que esse carácter fictício surge abertamente. Por exemplo quando os Estados já não são capazes de reembolsar as suas dívidas (a Rússia é o caso o mais recente), o que é, de resto, na realidade, o caso de quase todos os que acumulam empréstimos sobre empréstimos [12] para ocultar o problema. Ou, outro exemplo, se virmos a subida dos valores bolsistas que, apesar das manobras acima citadas para favorecer os dividendos, levaram o rendimento das acções [13] a níveis historicamente fracos. Os coeficientes de capitalização dos resultados (CCR) são duas a três vezes superiores ao que eram antes de 2007. Assistimos então a fenómenos paradoxais, como, por exemplo, nos três anos 2012-2014 os lucros das empresas da zona euro caíram cerca de 7% quando, ao mesmo tempo, o valor das acções aumentou 40%. Ou ainda, o rendimento das acções das 500 primeiras empresas norte-americanas (Standard and Poor’s) foi de 1,87% em 2014, contra uma média de 4,41% nos 130 últimos anos. É evidentemente essa degradação das taxas de lucro que acarreta a dos investimentos mencionada mais acima.

Essa enorme bolha de capital fictício só poderá, dentro em breve, chegar ao mesmo resultado que as precedentes: o crash. Haverá contudo dois elementos novos nessa bolha e no seu crash: 1°) a sua amplitude, que é sem precedentes, 2°) a impossibilidade para os Estados de impedir que se transforme imediatamente em desordem generalizada do sistema financeiro, visto que os seus Bancos Centrais já não poderão utilizar a emissão de moeda pelo facto de, justamente, esse crash não ser apenas a constatação da inutilidade desse método, mas, ainda muito pior, que foi um remédio que de facto só fez recuar um pouco os prazos, à custa de um formidável agravamento do mal pelo gigantesco crescimento da massa de capital fictício e parasitário a que deu lugar. Como se quisessem curar um drogado dando-lhe sempre mais drogas. Até a overdose fatal, portanto!

Ora, visto que este sistema financeiro não só é inerente como indispensável ao sistema capitalista moderno, de que o crédito é um elemento essencial, seu colapso será um sismo generalizado. São de prever montões de créditos irrecuperáveis, falências em cadeia, queda das moedas, destruições massivas de capitais, miséria e desemprego decuplicados, assim como as suas consequências: conflitos sociais exacerbados, guerras, ditaduras. Isto a não ser que surja um movimento revolucionário organizado para a abolição do modo de produção capitalista. O que, infelizmente, não parece poder acontecer com suficiente rapidez. De resto, esse “programa” catastrófico desenvolve-se já por toda a parte, como se vê por exemplo com a multiplicação das guerras no Médio Oriente, em África, o aumento considerável das despesas militares por toda a parte no mundo [14], a supressão brusca dos direitos democráticos onde existiam ainda em parte, o ascenso dos teofascismos religiosos (islâmico, mas também, desde há muito, sionista, ou ainda, menos sanguinário neste momento, cristão) como dos neofascismos “tradicionais”. Tudo isto são sinais evidentes da senilidade do capitalismo, e a análise da sua crise põe a descoberto que, em plena deliquescência, só pode sobreviver (não pode reproduzir o capital, o processo de valorização) na sua putrefacção, que se agrava permanentemente, pelo menos enquanto uma revolução política que abra a via a uma verdadeira sociedade comunista não lhe ponha termo.

As políticas ditas “de austeridade”, de aumento da extracção da mais-valia sob a sua forma absoluta, referidas acima, entram evidentemente no quadro dessas políticas fascizantes ou já fascistas. Observemos, portanto, agora os resultados desse segundo tipo de “remédio” para a crise depois de ter analisado a política monetária.

Acontece que os economistas oficiais, nem sempre iludidos com as receitas fáceis e miraculosas da emissão de dinheiro, recordam ser necessário um “regresso ao fundamental”, “às reformas estruturais”, ou seja à extracção de uma real mais-valia para valorizar e reproduzir o capital (e a sociedade capitalista). Incentivam os Estados, acompanhados pelo coro dos capitalistas activos [15], a aplicar vastas “reformas estruturais”, ou seja, que degradam profundamente a relação salarial em detrimento dos assalariados. Ora essas políticas “de austeridade” [16], de “flexibilidade”, de intensificação do trabalho, de destruição dos direitos dos trabalhadores e das suas “conquistas” sociais são ineficazes para relançar a produção de mais-valia e o crescimento da acumulação do capital, por várias razões:

1) A redução da massa salarial provocada pelas medidas de austeridade, estimulada pela utilização da subida do desemprego, da imigração, das deslocalizações que crescem à escala mundial, a concorrência pela venda da força de trabalho, leva evidentemente à baixa do consumo, e portanto da produção. Assim, o que o capital tem imperativamente de fazer, obrigado pela concorrência, para sobreviver nessa crise, ou seja, baixar os seus custos de produção, acaba por prejudicar o conjunto do capital global.

2) No capitalismo contemporâneo, a fraqueza da massa salarial relativamente à importância do capital fixo (maquinaria) no processo de produção da mais-valia torna muito menos eficaz do que no passado, quanto à essa produção, a elevação da taxa de exploração dos proletários ainda empregados (isto de resto quaisquer que sejam as modalidades de extracção dessa mais-valia, absoluta ou relativa).

3) Essa exploração torna-se muito mais aberta, visível e brutal quando os meios utilizados são os da extracção da mais-valia sob a sua forma absoluta [17]. Portanto suscita resistências igualmente mais fortes e mais violentas da parte dos proletários (e outras camadas populares). O que não quer dizer no entanto espontaneamente nem necessariamente anticapitalistas, porque, sob o efeito da ideologia dominante (que tem fortes bases materiais naqueles em quem se apoia a propaganda burguesa, que dispõe da posse ditatorial de todos os média de massa e de uma corte de intelectuais pagos para a difundir), são os proletários - em quantidade, e mesmo muito maioritários neste momento - quem deposita ainda esperança na utopia de um “outro” capitalismo, de um outro governo (do tipo FN para uns tantos) que reforçaria Estado e saberia utilizá-lo para obrigar o capital, chamado “a economia”, a servir “os homens”, o povo, a nação, a pátria!

No entanto, há outro resultado dessas políticas de austeridade, este positivo, que se verifica particularmente nos países desenvolvidos: a confirmação do desaparecimento de uma base importante da hegemonia dessa velha ideologia dita “de esquerda”. Como recordámos acima, é a que existia quando o capital estava numa fase de crescimento baseado em ganhos de produtividade suficientes para permitir aumentar os lucros concedendo, mais ou menos em função da pressão grevista, melhorias do nível de vida material dos trabalhadores. O que alimentava a esperança de uma melhoria gradual da sua condição pela única via da luta salarial, da mediação dos aparelhos sindicais e do voto “de esquerda”. Ora a confirmação da análise das características historicamente específicas dos fundamentos da crise de reprodução do capital, tal como a fizemos mais acima, confirma também a inutilidade dessa esperança. De facto, os ganhos de produtividade reduziram-se muito e portanto, por causa dos rendimentos decrescentes, interessavam muito menos os funcionários do capital. O que acaba por ser reconhecido por muitos economistas oficiais : “o fraco crescimento deve-se essencialmente à grande fraqueza dos ganhos de produtividade, da ordem de 0,6% por ano apenas” [18] ; “já não é possível continuar a negar a baixa da produtividade, a mola principal do dinamismo económico” [19].

Conhece-se bem a causa essencial dessa situação: o alto grau de mecanização da produção já atingido que, tendo reduzido consideravelmente a parte do trabalho vivo produtivo de mais-valia relativamente à da maquinaria, torna finalmente cada vez menos interessante, em termos de rendimento financeiro, um novo crescimento da mecanização, visto que terá custos excessivos em relação à economia de mão-de-obra que permitiria. É sempre este fenómeno de evanescência do valor, que afirmámos como a característica fundamental da situação do capitalismo contemporâneo, que é confirmado por esse declínio estrutural dos ganhos de produtividade. E todo este movimento ainda não terminou visto que, empurrados por uma concorrência exacerbada [20], os capitalistas são, apesar de tudo, obrigados a automatizar mais um pouco os processos de produção, mesmo quando isso só lhe proporciona rendimentos decrescentes. É que a instalação de robôs nas fábricas é facilitada pelo facto de o seu custo diminuir, sendo ao mesmo tempo mais eficazes. É que a diminuição do valor afecta tanto a dos meios de produção como a dos bens de consumo (portanto do valor da força de trabalho, ademais empregada em menor quantidade por causa da robotização). Donde este aparente paradoxo: a baixa do valor dos factores de produção (maquinaria, fornecimentos, mão-de-obra) não acarreta nem aumento da mais-valia (salvo alguma empresa particular, e provisoriamente, sob a forma de mais-valia extra), nem retoma do crescimento. Isso contrariamente a toda a história do capitalismo até esta crise. Paradoxo que é de facto a confirmação de que as dificuldades da valorização só encontram explicação como sendo a consequência da evanescência do valor.

Os futurologistas veem o futuro próximo assim : “O parque de máquinas deveria crescer 10% ao ano nos 10 próximos anos” (Le Monde, 30/09/15) e “os custos de produção baixar de 20 a 25%” na China, “um terço” nos EUA, Alemanha, Coreia do Sul, etc. “Um relatório da universidade de Oxford concluía que 47% dos empregos americanos desaparecerão nos 20 próximos anos por causa da robotização. Esta sombria previsão é compensada pelos 44% das sociedades americanas que reduziram os seus efectivos a partir de 2008 automatizando os métodos.” (Les Echos, 09/06/15). “Segundo um estudo cuja credibilidade foi bem aceite, 50% dos empregos estão ameaçados pela digitalização” (D. Cohen, uma das estrelas mediáticas francesas da economia, in Libération 04/09/15). E a informática é barata, não tem grandes custos! No entanto, 1) todas estas previsões são as de “especialistas” que muitas vezes se enganam, e 2) que também se podem enganar aqui pois esquecem que, nos 10 próximos anos, o sistema capitalista estará em tais dificuldades e decepções, se não for derrubado antes, que de certeza não terá podido deitar mão a todos esses potenciais desenvolvimentos robóticos. E estes não afectam apenas os sectores industriais ou agrícolas, mais também os trabalhadores do sector dito “terciário” (comunicações, finança, comércio, administração etc.).

Qualquer que seja a amplitude dessa robotização, o fenómeno de evanescência do valor é reconhecido assim por esses economistas oficiais, ainda que não o saibam, como o senhor Jourdain não sabia que fazia prosa. [d]

É ainda confirmado por outro facto: uma inflação próxima de zero dos preços nominais das mercadorias no preciso momento de uma emissão tão massiva de “liquidez” teria provocado, segundo toda a lógica da teoria económica oficial, um crescimento considerável [21]. O que não se verificou, visto que os fluxos da criação monetária não foram canalizados para a economia “real”, mas para os títulos financeiros (hiper-inflação de capital fictício).

De resto essa inflação quase nula dos preços nominais é de facto o resultado actual de uma diminuição contínua da inflação desde há cerca de cinco anos, quer dizer, de uma tendência para a deflação. Ao ponto de certos financeiros, coisa nunca vista, colocarem o seu dinheiro a taxas de juros nominais negativas nas mãos de mutuários considerados como seguros, sempre solváveis (Estados, Bancos Centrais). O melhor que esses credores esperam é que esse rendimento negativo, por exemplo -0,5%, seja inferior à deflação que detectam e já tomam por certa: se ela for, por exemplo, de 2%, considerarão, a justo título, que beneficiam de uma taxa real de 1,5%. Ora cerca de 35% dos fundos das obrigações ditas soberanas (as dos Estados) já ofereciam esses rendimentos negativos no início de 2015. Essa tendência deflacionista é suficientemente líquida para que certos economistas comecem a alarmar-se com a “vaga deflacionista que alastra actualmente sobre o planeta […..] (e que) ameaça instalar o mundo numa era glaciar.” [22] Porque ela significa efectivamente a desvalorização dos capitais, reais e fictícios, a destruição de muitos deles, a explosão do sistema dos créditos, com dívidas que se tornam tanto mais irreembolsáveis quanto os seus montantes acabariam por ser aumentados a prazo por essa deflação.

Evidentemente, os preços podem variar em função da oferta e da procura. E uma retoma momentânea do crescimento poderia criar inflação, nomeadamente a partir de uma alta dos preços das matérias-primas (petróleo, gás, minerais, etc.), sendo que essa alta nivelando por baixo ainda mais o consumo e os lucros, não duraria. De qualquer maneira, a tendência de fundo é mesmo deflacionista visto que, como vimos, os custos de produção e o valor das mercadorias não deixam de baixar com os aperfeiçoamentos da maquinaria. De resto, essa tendência acelera-se com a crise, visto que o exacerbamento da concorrência que ela implica só permite a subsistência, em cada ramo de actividade, das empresas com os mais baixos custos de produção, nomeadamente salariais. Essa tendência deflacionista não é senão outra manifestação dessa erosão, dessa evanescência do valor em geral.

Podemos tirar três conclusões da actualização da situação do capitalismo contemporâneo que apresentámos nas páginas anteriores.

1) Constitui uma confirmação espantosa da análise dessa situação exposta em anteriores obras com base nos trabalhos científicos de K. Marx. Nomeadamente que a raiz mais profunda, mais essencial e mais característica da crise actual se encontra na baixa drástica da quantidade de trabalho social que o capital geral pode empregar (ou seja, com uma taxa de lucro suficiente). Por outras palavras, na evanescência do valor.

2) É por isso mesmo uma confirmação magnífica da veracidade da análise feita por Marx do modo de produção capitalista. A qual o levou nomeadamente a esta conclusão de que o capital era a “contradição em acto”, visto que, ao desenvolver sem cessar a produtividade, a eficácia (o valor de uso) da maquinaria, ele socavava a existência de valor que se valorizava pelo trabalho vivo.

3) Não se baseando nessa teoria, ou seja fora da sua aplicação à análise concreta da situação concreta do capital contemporâneo tal como revelada pela sua crise, e recordada aqui brevemente, as lutas proletárias, que evidentemente fazem parte dessa situação, só podem travar a queda, mas não detê-la. O que não quer dizer que não devam ser conduzidas, e duramente, mas que não impedem o capital de se perpetuar numa crise crónica, que não impedem portanto os inelutáveis efeitos catastróficos e bárbaros. Os fundamentos específicos dessa crise implicam que se tornou obsoleto o tipo de lutas que foi o da maior parte dos movimentos proletários dos séculos XIX e XX, que visavam essencialmente, pelo menos na maioria, objectivos, tornados inacessíveis no quadro do capitalismo actual, de “reforma” vista como pleno emprego, melhoria progressiva das condições de vida, ou seja também como reprodução da condição, mais ou menos materialmente melhorada, de proletário, assim como, concomitantemente, do capital.

É certo que a evanescência do valor, se está na base das inultrapassáveis dificuldades com que se depara hoje a acumulação do capital e da sua putrefacção, não explica por si só todas as suas manifestações concretas, toda a realidade. Existem todo o tipo de mediações, todo o tipo de dados históricos, económicos, culturais, geográficos, todo o tipo de circunstâncias, e mesmo por vezes o acaso, a participar no fabrico do concreto e que fazem com que essa putrefacção surja sob todo o tipo de aspectos diferentes, de resto, em diferentes momentos. Os efeitos da crise não são uniformes, mas diversos e múltiplos (económicos, ecológicos, urbanos, agrícolas, ideológicos, políticos, militares, etc.). E, claro, as lutas partem sempre dos efeitos concretos contra os quais se insurgem os que a eles estão sujeitos, e não se dirigem primeiro às suas raízes. Mas para terem êxito, sabemos bem que todas essas resistências, todas essas lutas têm de se unir, e para isso têm de identificar um inimigo e um objectivo comum. Para lá chegar não basta a experiência, nem a vontade. É preciso também que o maior número possível de combatentes tenham a compreensão do que dá base a essa comunidade de interesses, do que há de comum em todos esses concretos diversos: a raiz comum é a queda da quantidade de trabalho social produtor de mais-valia (ou seja, em termos teóricos, a queda do valor), e a solução comum reside numa revolução política que proceda à abolição do Estado burguês e permita a instauração de um verdadeiro poder do proletariado com base no muito possível e formidável aumento do tempo livre, o tempo para se educar, controlar, dirigir, e, como objectivo final, abolir a condição de proletário apropriando-se das condições da produção, as do seu livre desenvolvimento.

Os que hoje querem militar pelo comunismo não serão úteis se não procurarem enriquecer e propagar esse conhecimento concreto das causas a fim de ele poder afirmar-se como conhecimento pelos e para os proletários, como conhecimento das necessidades que se lhes impõem se quiserem deixar de cair no sempre pior, e o conhecimento das possibilidades de dominar o seu próprio destino. Confiando apenas na “prática”, afirmando que os proletários nunca se interessarão pela teoria (portanto de facto pela análise concreta), a maior parte desses militantes, infelizmente em muito pequeno número hoje, cruzam os braços. O que equivale a encorajar os proletários a manter-se numa prática cega, sem outro resultado, quando muito, que não seja opor-se mais ou menos às ofensivas do capital, e na pior das hipóteses envolver-se nas vias catastróficas do nacionalismo e do neofascismo. Os partidários da revolução comunista têm portanto por obrigação, se quiserem ser consequentes, unir e organizar as resistências, trabalhar para relacionar todos os diversos efeitos concretos da putrefacção do capitalismo com o que os une, com a causa desta, com a crise nas suas características históricas particulares, e a partir daí poder trabalhar para detectar e estimular nas lutas tudo o que surge, mesmo que ainda sob forma embrionária, como respondendo adequadamente a esta situação, como permitindo aproximar objectivos comuns definidos pelas necessidades e possibilidades que implicam, e assim unir os proletários em proletariado.


Tradução para o português de Ana Barradas

Lisboa, março de 2017.

NOTAS:


a) Referência à sequência de ataques da organização “teofascista” autodenominada Estado Islâmico em Paris em 13 de novembro de 2015. Os ataques no teatro Bataclan, no Stade de France e em outros quatro locais causaram aproximadamente 180 mortes e 350 feridos. Na sequência, o governo francês decretou estado de emergência nacional, toque de recolher em Paris e fechou as fronteiras do país, além de reforçar sua ofensiva militar com ataques aéreos contra alvos do Estado Islâmico na Síria (Nota do Blog Cem Flores).

b) Acrônimo em árabe de Estado Islâmico (Nota do Blog Cem Flores).

c) Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento. Também conhecida por sua sigla em inglês, Unctad (Nota do Blog Cem Flores).

d) Senhor Jourdain: O quê? Quando eu digo «Nicole, traz-me os meus sapatos de quarto e dá-me o meu roupão», é prosa? O Professor de Filosofia: É , sim, senhor. Senhor Jourdain: Céus! Tenho falado em prosa nos últimos 40 anos e não o sabia! Molière, Le Bourgeois Gentilhomme (Nota da tradutora).

[1] Ainda que se possa legitimamente pensar que a selvajaria de hoje não é pior que as do passado: massacres coloniais, guerras mundiais, etc.

[2] Ver as minhas obras anteriores sobre essa questão.

[3] Existem outras causas para este esgotamento, e que o amplificam fortemente, além dessa evanescência, ver T. Thomas, Démanteler le capital ou être broyés, edição Page Deux, Lausanne.

[4] Ver T. Thomas, La Crise. Laquelle ? Pourquoi ? edição Contradictions, p. 87-94.

[5] Ver T. Thomas sobre a distinção das 3 grandes épocas da mundialização, in Les Mondialisations, edição Contradictions.

[6] Extracção da mais-valia sob a sua forma relativa.

[7] Crença baseada nos fetichismos da mercadoria e do Estado, que subsistem como base fundamental da ideologia burguesa. Sobre esse ponto ver T. Thomas, Etatisme contre Libéralisme, est toujours le Capitalisme, ed. Contradictions ; La montée des extrêmes, ed. Jubarte ; Les racines du fascisme, ed. Albatroz.

[8] Sobre este ponto, ver T. Thomas, Nécessité e Possibilité du Communisme, ed. Jubarte.

[9] Só o BCE compra 60 milhares de milhões de euros por mês desde Março de 2015, e comprometeu-se a continuar a fazê-lo pelo menos até 2016. A moeda assim emitida não passa evidentemente de dinheiro falso.

[10] A sociedade chinesa Foxconn, mais de um milhão de proletários empregados, celebrizou-se pelas suas “performances” neste domínio (ver “La machine est ton seigneur e maître”, edição Agone). Mas está longe de ser a única, nem mesmo é a pior.

[11] Estes podem também aumentar, para as empresas que tenham filiais no estrangeiro, devido às variações de taxas de câmbio (o que explica por exemplo uma subida de cerca de 5% nos lucros das empresas do CAC40 em 2015). Mas não falaremos aqui do facto de que, ao nível do capital global, é um jogo de soma nula.

[12] Emprestar de novo para reembolsar o que não foi pago a tempo.

[13] Medido pelos CCR, coeficientes de capitalização dos resultados (ou PER, price earning ratio), ou seja, a relação preço/lucros por acção.


[15] Gestores, chefes de empresas, distintos dos capitalistas “passivos”, os financeiros, os detentores de rendimentos.

[16] Que não se aplicam evidentemente às vastas castas políticas e mediáticas, nem às inúmeras, e sempre prolixas, e sempre mais ávidas castas de altos funcionários públicos ou privados do capital, nem aos paraísos fiscais, nem às evasões fiscais (o antigo chefe do Luxemburgo, grande especialista neste domínio, até foi chamado para ficar à testa da Europa!), nem etc.

[17] Cf. T. Thomas, La crise. Laquelle. Et après, ed. Contradictions, p.85-94.

[18] Patrick Artus, Les Echos 28-29/05/2014.

[19] J. M. Vittori, Les Echos 07/10/2015.

[20] E pela possibilidade de obter uma “mais-valia extra”, ou seja temporária, como resultado de um avanço tecnológico (portanto temporário) em relação aos seus concorrentes.

[21] O que era de resto desejado, e é ainda, pelos Estados, sendo a inflação um meio de se desembaraçarem das dívidas reembolsando-as com “dinheiro falso” enquanto o poder de compra dos salários diminui sub-repticiamente. No entanto uma inflação demasiado forte arruinaria essa outra função da moeda que é de representar e conservar o valor no tempo. De facto isso arruinaria o sistema do crédito, e a partir daí o sistema capitalista contemporâneo, que se baseia no crédito. É por isso que, divididos entre as vantagens e os inconvenientes da inflação do preço das mercadorias, os economistas oficiais a desejam “limitada”, da ordem de 2 a 4% por ano. Um pouco, mas não demasiado, é essa a grande ciência! Ora, pouco importa, pois, como vimos, a hiper-inflação de capital financeiro fictício arruína já o sistema capitalista contemporâneo.

[22] G. Maujean, Les Echos, 21/09/15.

*Tom Thomas é um ensaísta marxista francês, residente em Paris. Durante muitos anos militou em diversos agrupamentos da esquerda marxista-leninista, tendo fundado 'La Voie Proletarienne'. Actualmente é um escritor independente, sempre comprometido, tendo vindo a desenvolver uma obra muito importante para a renovação do marxismo, com dezanove títulos publicados, desde 1988. Algumas destas obras foram publicados em língua portuguesa nas edições Dinossauro, Lisboa: ‘A ecologia do absurdo’ (1994), ‘Breve história do indivíduo’ (1997), ‘A hegemonia do capital financeiro e a sua crítica’ (2000), ‘O Estado e o capital: o exemplo francês’ (2003), ‘A crise crónica ou o estádio senil do capitalismo’ (2007). (Nota extraída d`O Comuneiro e reproduzida por Cem Flores na postagem Escolher entre a destruição do capital ou a da humanidade. Desse autor publicamos ainda a introdução ao seu livro A crise crônica ou o estádio senil do capitalismo que pode ser acessada aqui).

Original em http://www.demystification.fr/blog/de-la-situation-actuelle/

Acesse aqui a versão em pdf.

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